domingo, 27 de setembro de 2009

Labuta

Ao abrir os olhos, era ainda noite. Mas o dia já começava. Na casa silenciosa, os sinais do ontem nao tao distante: desordem na sala, pratos do jantar, poeira do chao de terra que entrou pela janela. Resolveria à noite.

Saiu de casa agasalhada e sentou-se no lugar de sempre da van. Viajou calada, meio-acordada, meio-já-sem-sono. O sol raiou dentro do ônibus, para onde correu ao chegar na Central, mas nao conseguiu se sentar. Devia ter vindo na van das quatro horas, pensou.

A dor nas varizes da perna era sua companheira de viagem. As pernas, festejadas anos atrás no bar onde ia beber e dançar. As pernas, que enganchou nas do ex-marido naquela primeira dança, e só largou quando a polícia veio buscá-lo, numa madrugada em que dormiam abraçados.

Chegou ao edifício na zona sul suada e encasacada, com o sol a pino. O porteiro lavava a calçada sem molhar o uniforme. Deram-se bom dia, contaram as novidades, já velhos conhecidos de toda sexta-feira. Comentaram que a chuva viria no domingo e que o tomate subiu que foi uma beleza. Ele contou que o morador do 703 havia sofrido um enfarte na noite de terça, mas a ambulância, graças a Deus, chegara a tempo. Já havia saído da UTI, contara o genro que foi buscar algumas roupas no apartamento, e voltaria para casa no sábado à tarde.

Ela contou que desovaram um corpo na sua calçada na quinta de madrugada. O terceiro, desde que o comando mudou. Os vizinhos disseram que era um rapaz da rua de cima, mas ela nao quis ver corpo nenhum, nem deixou os filhos pequenos verem aquela tristeza.

Ele pediu desculpas pela indiscriçao e perguntou o que era aquilo no seu pescoço, que ela estava andando feito um robô. Ela disse que o médico do posto mandou usar, pela dor nas costas. Custou doze reis, veja que prejuízo! E mandou que ela fosse também ao médico dos nervos. Ela foi, obediente, esperar de novo para ser atendida na madrugada do dia seguinte. Era jovenzinho, esse outro doutor, mas muito atencioso. Passou-lhe um remédio que dava um sono doido o dia inteiro e disse que ela deveria ir para a cama às nove da noite, para deixar de se sentir tao nervosa. Ela teve até vontade de rir, imagine, com tanta coisa para fazer quando chegava em casa... Mas se controlou, para o rapaz nao pensar que era deboche. E agora tinha que subir, já ia dar sete e meia.

A patroa dormia na cama de casal, com o edredom branco que ela alvejou, só os passarinhos lá fora de barulho no apartamento. O dia claro entrava pelo voile fechado. Fez as coisas de sempre: roupa do varal, pia de pratos, ferro esquentando mal, mas nao adiantava avisar. Quando já lavava o banheiro dos fundos, ouviu lá de dentro: "Beth, é você?". Gabriela Sandes

2 comentários:

  1. PRO:
    Uma descrição evolvente e autentica da rotina de uma empregada domestica.

    CON:
    Qual e a estória do conto? Qual a mensagem que o autor quer passar? Enquanto que bem narrado, esta mais para um pequeno documentário que para uma estória curta.

    ¨meio-acordada, meio-já-sem-sono¨ Imagine no lugar, o copo estava meio-vazio, meio quase-sem-água. Duas metades da (praticamente) mesma coisa, não são duas metades.

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  2. Vc tem razao, Marcello. Que tal, entao, "meio sonolenta, meio-já-sem-sono"? gabi

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