quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ele vem

Ele vem. Eu sei que vem. Vem quando a gente menos espera. De madrugada, no trabalho, na caminhada matinal pela praia, durante os sonhos. Vem devagar, em partes, às vezes fragmentado, muitas outras sem sentido. Parece que não conecta uma coisa na outra, parece que não vai dar, que vai faltar ou que não tem liga, mas vem. Vem durante o passeio com o cachorro, vem durante uma cruzada de olhar ou de perna, vem num segundo. Precisa ser apreendido, domado, entendido. Escrito. Enquanto não vem a tona, à tela, fica ali. Indo e vindo. Não nos deixa em paz, absorve, invade. Precisa ficar livre, solto. Começa com uma frase. É o pontapé inicial. Sei por aí se vai ter fim. E começo. Vem de dentro, pode começar com um sentimento, uma sensação, um acontecimento. Pode ser uma noticia de jornal, um papo de cozinha, uma visita inesperada. Pode ser numa viagem qualquer. Interna ou externa. Pode ser num texto. Numa leitura. Na leitura com certeza vem. A leitura abre, liberta, instiga, mexe, remexe e o obriga a vir. Quando vem não dá para impedir. É como uma dor forte, incontida. É como um pum que precisa sair. Não dá para esperar. Fica martelando o tempo todo. A frase, a palavra, o som. Tem de ser repetido baixinho até o momento de ser digitado. Aí sim, parece que fica claro. Que faz sentido. Meu maior medo é de ele não vir mais. De desaparecer de mim. De nunca mais voltar. As vezes fica dias sem aparecer, assustando, provocando. Outras vezes vem com tudo, sem anunciar, sem mesmo querer. Vem e invade. Toma toda a atenção. Dispersa o resto e se torna prioridade. Tem de cuidar, agradecer, aproveitar, distribuir, para que continue vindo, firme e forte. Preciso. Dá trabalho, cansa, esgota, exaure. Tem de fazer sangrar como diz Caio. Mas o prazer que dá não tem igual. Não tem do que reclamar. Muito pelo contrario, não dá pra viver sem.

carmem maia

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Felicidade

As bocas se descolaram, deitaram cada um para o seu lado suados. O repertório era conhecido. Bebiam e já no carro a mão subia nas coxas dela, no elevador,mais beijos, o decote desabava, brincavam que não ia dar tempo, fazia parte, entravam sem sapatos para não acordar o filho e iam direto para o quarto.
Se conheciam tão bem que pareciam que adivinhavam o que o outro estava pensando. Ela perguntava por perguntar, muitas vezes já sabia a resposta. Ele por sua vez não perguntava. Quando o viu pela primeira vez corou. Seu irmão levou o amigo novo da faculdade para jantar em casa. Ele comia bonito, mastigava várias vezes, nunca falava de boca cheia e nem colocava o cotovelo na mesa. Fino, como a mãe gostava de dizer. Ele por sua vez reparou na maneira que ela o olhava, variando entre olhos muito abertos e as vezes de lado. Empostou a voz, consertou a postura e pensava bem antes de falar. Assuntos políticos, econômicos, coisas de quem tinha uma opinião sobre o mundo.
A cintura dela, fina, e os seios redondos contrastando com um sorriso de aparelho e sardas, o deixaram desconsertado. Até então só conhecia as mulheres que pagava juntando o dinheiro da mesada, de dois em dois meses, pois fazia questão das mais caras, que também são as mais limpas, dizia seu pai. Aos poucos ela amadureceu, entrou na faculdade e ele esperou.
O casamento foi planejado pelas duas famílias, com gosto. Ela ainda tinha o mesmo rosto e apesar do corpo não ser mais o mesmo, o deixavam enciumado. Podiam dizer que provocavam inveja. O apartamento ganho no casamento ajudou, viviam com folga. Viagem para o exterior, todo ano. A meta deles agora era um carro novo, um jipe, forte e imponente.
Hoje era dia de aniversário de casamento. Os presentes de ambos devidamente comprados em segredo. Ele já tinha planejado levá-la em um restaurante caro, aquele que eles nunca iam. De manhã se beijaram mais demorado do que o habitual, ele cumpriu sua rotina matinal, de terno foi para o trabalho. Ela tomou banho, colocou a roupa de ginástica e foi para a academia.
Mas no trabalho a secretária já tinha sido avisada que ele hoje ia para Barra do Piraí visitar um cliente, mas se a mulher ligasse, falasse que ele estava em reunião, para que não ficasse preocupada com o jantar a noite. Na academia suas amigas, pensaram que ela estava fazendo massagem e depois no salão se preparando para grande noite.
No motel ele abriu a caixa e entregou um anel para a filha do chefe, pois diante a ameaça de contar tudo fora o único jeito de amansar o gênio da menina. Um anel mais bonito que o dela. Ela em uma quitinete, esperava nua com whisky no copo, o amigo da faculdade, que no último reencontro da turma conseguiu tudo o que ela havia lhe negado quando estava noiva. De noite o jantar foi ótimo. Ela linda de preto, comeu ostras de entrada, lagosta no prato principal e souflé de framboesa de sobremesa. Ele de blazer, pediu foie grois, cherne com espuma de alho poró e mousse de chocolate.

Patricia

domingo, 25 de outubro de 2009

Espuma - versão final - Lais Pimentel

Espuma

I
A decisão de se matar tinha sido tomada com cuidado e critério. A idéia amadureceu durante uma noite de insônia, durante as horas passadas contando estrelas no terraço. O que mais tomou o tempo de Malvina foi a escolha da maneira de se despedir da vida. Tiro, pular de uma ponte, gás, acidente de carro? Ela conversou muitas vezes com um grande amigo médico, assistiu a séries policiais, procurou informações na internet. Não queria sentir dor. Queria também que a encontrassem inteira e lamentassem o seu triste fim. “Por que uma mulher tão bonita decide dar adeus à própria vida?”, diria o rapaz da perícia, imaginava Malvina.
Tinha que ser sábado à noite. A filha mais velha estaria na casa do pai e, assim, teria a privacidade e a calma necessárias para se despedir de sua casa, de suas memórias e lentamente morrer.

Porque hoje é sábado, é dia de Malvina morrer.

A opção escolhida foi a de cortar os pulsos durante um longo banho de banheira.

Malvina passeia pelos quartos, toca as fotos emolduradas, chora muito em sua despedida mas não há mais tristeza nas lágrimas. Beija demoradamente o retrato do Danielzinho e murmura que, em breve, eles estarão juntos de novo. Danielzinho era mesmo a cara do pai. Agora, na contagem regressiva, ela tinha saudades do ex-marido e, por um segundo, se esqueceu da mágoa. Mas só por um segundo mesmo. Imaginar Daniel com a melhor amiga dela, quer dizer, ex-melhor amiga, fez com que o rancor lhe queimasse o rosto. A dor veio com tanta força que a levou direto ao banheiro. Era chegada a hora.

A espuma borbulhava na banheira como se tivesse vida própria. A espera da morte seria preenchida repensando a curta existência – 42 anos... engraçado... sempre achou que viveria pelo menos o dobro! Imaginava-se cheia de netos espalhados pelo mundo. Ótima desculpa para manter sua agenda de viagens em dia. Reveria os melhores e piores momentos acompanhando o fim das bolhas da espuma. “Vejo poesia na hora da minha morte. Pena que não a tenha encontrado em vida.”, lamenta-se Malvina.

Malvina deixa o roupão cair no chão com o glamour natural das divas. Só agora nota, jogada num canto, uma das bolinhas de borracha que fazem a alegria de Gloria. O poder do olhar que dizia vejo-a-dor-que-você-sente-e-te-amo-sem-limites fizera com que decidisse deixá-la num canil neste fim de semana. Agora, porém, lamentava não ter Gloria ali, naquele instante, para abraçá-la longamente, como fazia quando a angústia era intolerável.
Ela entra sensualmente na banheira. Olha para as estrelas, companheiras dos bons e dos maus momentos e, com a faca dentada do pão, colocada ao lado junto com a taça de champagne, corta verticalmente os dois pulsos. Sem hesitação. Assim é infalível, havia lhe explicado o amigo médico. “Quantas horas terei de vida agora?” – diz Malvina, em voz alta, encantada com a própria voz amplificada na acústica do banheiro.


II

“Daniel? Chegou cedo...”, disse eu, feliz e aliviada em te ver. Desde a morte do Danielzinho, não conseguia ficar muito tempo em casa e principalmente sem você ou a Julia por perto. Mas, Deus, como estava enganada... a razão da tua presença naquele momento iria aumentar a minha solidão, o meu desamparo. “Malvina... senta aqui.” Sentei na tua frente e só aí percebi que você estava transtornado. “Você é a última pessoa no mundo que eu queria fazer sofrer... Se eu pudesse apertar um botão, e voltar ao que era antes, Malvina...” E eu, ainda cega ao óbvio, tentava te consolar! “Meu bem, o que aconteceu com o Danielzinho foi uma fatalidade. A gente fez tudo o que podia...”

Você ficou tão vermelho, mas tão vermelho, que achei que ia ter um troço. “Malvina, você não merece passar por isso... ninguém tem culpa... mas aconteceu.” “Do que você está falando, Daniel? Do que você está falando?” Comecei a sentir o meu corpo amolecer. “Aconteceu alguma coisa com a Julia?” Silêncio teu. Silêncio meu. E a bomba foi então jogada no meu colo. “Aconteceu alguma coisa, sim, mas não com a Julia. Comigo... ”

Senti um soco no estômago. Fiquei parada. Mais do que isso, paralisada de dor. Tive pena de mim, de nós dois, do que fomos. Me veio tudo à cabeça. A primeira vez que nos vimos, “Casa comigo, Malvina”, nossas viagens para acompanhar as corridas de Fórmula 1, as tuas ligações de madrugada quando você viajava sem mim, minha barriga crescendo, primeiro para a Julia, depois para o Danielzinho, o diagnóstico dele, leucemia, a última vez em que nós três nos abraçamos... E a Leila, presente em quase todos estes momentos. Como assim, meu Deus?

Mesmo agora, que meu corpo relaxa, abraçado pela água morna da banheira, sinto novamente o golpe no estômago sofrido quando ouvi, da tua boca, o anúncio do nosso fim. “Quando é que você e a Leila começaram a me trair? Antes ou depois da doença...?” Danielzinho... tão lindo, o meu filho. No aniversário de três anos, acordou indisposto. Manchas pelo corpinho gostoso, inchaço nos olhos, nos gânglios. Meus pulsos ardem agora... mas isso é ínfimo comparado ao que senti ao ver nosso filho definhando. “Mamãe jura que tudo vai ficar bem, né, papai?” “É óbvio que vai. E a gente vai viajar muito pra ver corridas de carro”. Danielzinho imita o barulho de um motor. Quase não tem mais forças para falar. “Brum Brum Bruuuuuuuuum.”

Percebo que a água da banheira está esfriando quando as lágrimas alcançam meu colo. Hora de mais uma taça de champagne. Mais bolhinhas a caminho... Vejo-me refletida na taça de cristal... Ainda sou tão bonita, uma beleza triste, triste. Morro sem antes envelhecer... Detesto água fria. Nem o sangue que agora tinge as bolhas da espuma da banheira amorna meus últimos momentos de vida. Quanto tempo ainda me faltará?

III

Hoje Malvina tem consulta marcada. Oficialmente é consulta mas, para mim, trata-se mais de um encontro, uma oportunidade de não ser apenas o sempre correto, eficiente e atencioso clínico geral, o médico da família Furtado.

Deixo sempre o horário seguinte vago para ficar à vontade com ela. Poucas, pouquíssimas, foram as vezes em que ela aceitou tomar um café à tarde. Malvina não é boba. Sabe que eu a desejo. Sempre muito elegante, muito íntegra, nunca sinalizou que percebesse minhas intenções só que uma mulher sabe quando é desejada.

Acompanhei de perto, como médico e amigo, todo o drama do câncer e morte do Danielzinho. De início, achei que o menino iria sobreviver. Estive presente, consultei especialistas, procurei novidades nos tratamentos, me coloquei à disposição mesmo quando o protocolo pedia privacidade para aquela família que se desfazia a olhos vistos.

A morte do filho, a traição de Daniel com a sonsa da Leila, o fim do casamento. Uma sucessão de traumas para Malvina. E, para mim, o que mais doeu foi não poder tê-la abraçado com o calor que merecia para que ela se sentisse segura para se desmanchar em lágrimas.

Nos últimos meses, ela marcou mais consultas do que o normal. Conversávamos muito no meu consultório. A Dinah sabia que eu não deveria ser interrompido por ligações bobas. Só emergências de verdade. Tínhamos um ritual. Eu preparava um expresso na minha máquina Lavazza e batíamos longos papos. Começava sempre com um ar de médico mas em segundos era um fã assumido. Mesmo na dor, Malvina não perdia o porte de princesa, uma elegância inquestionável, fria, segundo algumas mulheres invejosas, como a minha ex, por exemplo.

Malvina precisava de um homem mais velho como eu cuja experiência tinha ensinado o que era merecedor de atenção nesta vida. Alguém como ela, uma mulher sensível porém equivocada na escolhas que fez. Casou-se com o homem errado e errou na escolha da confidente. A morte do filho foi uma cachorrada da vida. Cachorrada, não, pois Malvina é amante dos animais. Foi simplesmente uma putaria. Daí eu nunca ter questionado seu súbito interesse por assuntos tão mórbidos. A perda de um filho deve levar muitas mulheres para um lugar sombrio, na busca pela compreensão desta separação irreversível e cruel. Malvina queria saber o que sente alguém que morre. Os que morreram, clinicamente, e voltaram, contam do tal túnel, da luz forte que se aproxima. Como a medicina investiga estas sensações finais.

Registros históricos garantem, por exemplo, que quem é decapitado ainda tem segundos de consciência após a queda da cabeça no chão. Ou seja: a cabeça vê o próprio corpo separado dela! Malvina ouvia atentíssima. Nunca a vi tão interessada em algo. E queria detalhes: tiro na cabeça, no peito, envenenamento, cortar os pulsos, se jogar de uma ponte, uma batida proposital de carro. Chances de sobrevivência, seqüelas, casos clássicos...

Não a poupava de detalhes. Eu me valia da minha condição para contar-lhe histórias colecionadas em anos de prática médica. Nunca tive tanto orgulho de ser quem sou. Mas, nesta sexta-feira, quis ser mais ousado. Não resisti. Dei-lhe um presente. Algo mais íntimo.

“Um presente, René?”
“Gostou? O perfume te agrada?”
“Não sinto cheiro algum. Meus sentidos estão mortos, acho...”
“Um dia, Malvina, prepare um bom banho e use esta espuma. Quero que você se sinta abraçada e protegida por mim e relaxe, relaxe de verdade. De alguma maneira, espero que possa te ajudar a se sentir bem.”

IV

Daniel teve uma ótima idéia ao fazer uma clarabóia em cima da banheira. 1, 2, 3, 4... O Danielzinho adorava contar estrelas e ria quando eu fingia que me assustava quando ele apontava para elas! “Não aponta com o dedo, menino! Vai nascer uma verruga na ponta do seu nariz!” Ele ria, ria, dava gargalhadas com este teatro todo.

Os cachorros da vizinha começaram a algazarra de sempre. Deve ser duas da manhã, então. Eles são pontuais... A Gloria fica louca com esta conversa canina do lado da nossa casa. Ela faz uma expressão de curiosa, de intrigada. Não foi fácil deixá-la no canil hoje de manhã... Ela percebeu que tinha algo de derradeiro dessa vez. Sempre digo: “Mamãe vai viajar e volta logo para te buscar.” Desta vez não falei nada. Quem será que ficará com ela?

Não me arrependo de não ter deixado bilhete pra ninguém. Melhor assim. Estão todos encaminhados, cuidando de suas próprias vidas. As que realmente me interessam, ocuparam o meu tempo. Daniel, Julia, Danielzinho... Leila... Estranho... não consigo me lembrar direito do rosto da Leila agora... a lembrança está embaçando... Me lembro bem da sua voz, dos conselhos bombásticos, da nossa sintonia, “eu ia te ligar agora!”, “Jura? Tô boba!”. A Leila é agora a voz de um rosto desfocado...

Sinto uma dor no peito... um enjôo...

Que lua linda, linda, linda!!!! Cheia, enorme, não dá nem para olhá-la direito... que brilho é esse, meu Deus?

Meus dedos estão enrrugadíssimos... Será que a Julia vai continuar a minha cara? Será que vai envelhecer e se parecer com a velhinha que nunca serei?

O céu já não está tão estrelado... Parece que enquanto vou contando, as estrelas somem, como as bolhas da espuma que aos poucos se desfaz em torno de mim.

Morro nua. Levo apenas a aliança de casamento e os dentinhos, um da Julia e um do Danielzinho, no colar. Morro casada e mãe. Já estou morta há tempos. Nada me move, nada me tira do ponto morto. Daniel ia gostar desta frase... Ponto morto... Não vejo um amanhã que justifique acordar mais um dia. Será que a Julia vai me odiar por antecipar meu fim? Será que se lembrará sempre de mim?

Confio mais na memória de René. Ele será fiel a mim até após a minha morte. Pena que não fui capaz de retribuir o sentimento dele. Cogitei mas fiquei na intenção.

Espero que ele não se sinta traído por eu ter usado dos seus conhecimentos para planejar minha morte. Meu bom René... Até consigo sentir o cheiro do expresso italiano que preparava sempre que nos encontrávamos no consultório dele. Se eu me concentrar no aroma do café quentinho talvez consiga parar de tremer de frio. Café, café... Odeio sentir frio...

Adorava dormir abraçada com o Danielzinho. Ele se encaixava perfeitamente nos meus braços. Não teve tempo de crescer e ficar desconfortável no colo da mamãe.

Que moleza boa...

As estrelas voltaram! 35, 36, 37... 38...
O Daniel sempre dormia enquanto contávamos estrelas... o Danielzinho, não. “Não aponta com o dedo, menino!”

A luz da lua se reflete nas bolhinhas que resistem. Parece que estou cercada de estrelinhas. Precisava agradecer novamente ao René pela espuma de banho. Que perfume delicioso... Tem cheiro de felicidade, de cama aconchegante, de abraço...

Olha o ta-ma-nho desta lua... Ela parece crescer mais e mais... Nunca vi lua tão cheia e tão baixa no céu...

Rio de Janeiro, outubro de 2009

Paródia de Em Busca do Tempo Perdido, por Lais Pimentel

Eu, Madalena, 52 anos, acabo de tomar um chá. De cogumelos. Tem mais de uma hora isso. Ou, meio minuto, sei lá. Agora, não me lembro mais. Sei que foi tempo o suficiente para ser arremessada contra a parede. Uma parede cheia de fotos de Alain Delon, Brigitte Bardot, Jean Paul Belmondo... todos jovens, lindos, no auge. Que tu est belle, Bardot...
Tem um cheio de anos 70 no ar...
Me viro de frente para a parede, cheiro cola Polar pertinho do meu nariz, cola com patchouli. Tudo tão familiar, tão íntimo. Só não me lembro a que quarto pertence esta parede.... A onda deste chá foi um tempo perdido. Sou uma Madalena arrependida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Férias

O gato olha para o passarinho na folha, que tenta ficar em pé. Escorrega. Meu coração se acelera. Para falar a verdade eu não gosto de pássaros e nada que tem penas. Parecem bolas de algodão, macios por fora e vazios por dentro, com pontas finas, bicos e pés quebradiços, tão frágeis como nunca tivessem deixado de ser ovo. Hoje pela manhã vim para a casa da minha tia, liguei para minha prima perguntando o que ela ia fazer. Mais um dia de férias. Ela falou vem para cá. Eu sabia que me convidaria, fiz uma mala, por que quando venho, sempre fico além do que deveria. Meus pais até me visitam, como em uma colônia de férias. Nessa casa cheia de gente, posso escolher, ler fotonovelas da prima mais velha, ir a praia com a prima do meio, brincar na rua com os vizinhos e a prima caçula, minha melhor amiga. Sempre que venho aqui fico sendo mais uma filha. Meus tios tratam todos iguais, nas tarefas e nos luxos, como fazer unha com a manicure que vem em casa. Minha mãe acha que eu sou criança, mas aqui todas fazem. Ontem de noite, depois do pique esconde brincamos de salada mista, foi minha primeira vez. Só pedi pêra e maçã, o garoto que eu gosto é o mesmo que a minha prima caçula, mas não contei para ela. Hoje vou arriscar, quem sabe não caio com ele. O único beijo de ontem foi o que a minha prima do meio deu no menino sebento que mora aqui em frente. Eca. Tomara que hoje os meninos sejam só o meu primo, o amigo dele e os dois irmãos que moram depois da esquina. Vou pedir para minha mãe trazer mais roupas, quero ficar aqui até o fim das férias, lá em casa eu fico sozinha e eles brigando. Ai! O passarinho escorregou! O gato pegou ele com a boca! Não encosto mais nesse gato.

10 Segundos de calor e emoção

Fátima Figueiroa

Me deu um frio na espinha ou no estomago. Este frio que sobe ou desce; não sei se no estomago ou na espinha, talvez nos dois. O mesmo da roda gigante no parque de diversões. Mistura de medo e emoção. Fiquei exposta; o rosto quente, a nuca fervilhava, as mãos tremiam. Minha preocupação era de que os outros percebessem, certamente iriam perceber alguma coisa no meu estado sendo transformado, mas não sabiam o que era. Foi quando me vi com um sentimento diferente por aquele homem durante uma decisão que tínhamos que tomar. Constatei um sentimento, paixão. Fiquei assustada com a minha reação.
Não tinha me dado conta desta emoção, trabalho intenso somente focado no dia a dia e derrepente nasce um forte sentimento, por alguém que já convivia e não tinha percebido que poderia ter paixão. Este tempo, de coração acelerado, parecia que não mais acabaria.
Ao concluirmos a decisão com a data e hora do que tínhamos que resolver operacionalmente, tive uma crise de ciúme inesperada por mim mesma. Crise esta que incluía uma mulher do grupo de trabalho que interferiu na decisão, sendo apoiada por ele.
Levantei subitamente, fiz uma cara de indignação. Todos perceberam, mas acharam que meu impulso era raiva, por ser dela uma opinião contrária a minha e a decisão de mudar o dia do evento.
Cerimonioso com a situação e sentindo-se dividido na questão, mesmo concordando comigo, ficou ao lado da mulher. Passei o maior recibo de ciumenta para ele (depois soube que ele já estava interessado em mim, mas eu não percebia, ele escondia)
Outra pessoa que trabalhava na equipe, amigo próximo, me olhou e disse sorrindo; você esta com ciúme dele? Eu disse, eu? Você está louco! Ele é que está todo derretido com a Marisa, concorda com ela em tudo, até mesmo no que pode atrapalhar o trabalho dele e facilitar o dela. Mas acredito ser importante este agrado dele para ela, alguma produtividade deve contar. Foi uma gargalhada geral, todos me olhando e concluindo que a minha cara de raiva era de ciúme.
A situação ficou insustentável; virou baderna. A conclusão final ficou a meu favor em relação à data, ele todo vaidoso, parecia um pavão. Eu com o rosto quente o coração disparado; um calor insuportável subindo pelas costas.
Meu segredo, até então descoberto por mim naquele momento, ficou totalmente exposto a todos; nem pude fazer, após esta deliciosa descoberta, um período de sedução às escondidas para dar mais emoção.

Expulso do Paraíso ou Todo fim é um começo

(Gisela)

Dez...
Comecei a entrar em desespero depois de perceber que os movimentos que pareciam apertar as paredes do cômodo tornaram-se mais freqüentes.

Nove...
Tinha a sensação que este cômodo, onde fui feliz nos últimos meses, estava me mandando embora. Por que será que estou sendo expulso? O que eu fiz de errado?

Oito...
Nem sei como vim parar aqui, mas não quero sair. Aqui me sinto seguro, afinal, tenho tudo o que preciso: comida, água, aquecimento e uma voz de fundo que me traz uma paz indescritível.

Sete...
De uns tempos para cá comecei a notar que o ambiente parecia menor e as paredes deslocavam-se de forma a me colocar para fora. No começo, estes movimentos ocorriam com pouca freqüência, no máximo uma vez por dia, mas agora praticamente não param.

Seis...
Lá vem mais um empurrão, muito mais forte desta vez. Sinto as paredes me apertarem e me jogarem para um corredor escuro e muito estreito – aliás, como nunca notei este corredor antes?

Cinco...
Acho que o corredor é estreito demais, não vou conseguir passar por aí, mas as paredes se fecharam e não tenho como voltar. Estou preso e ouço gritos do lado de fora.

Quatro...
Tenho muito medo do que vai acontecer, do que me espera lá fora. Como vou conseguir sobreviver? Será que vão gostar de mim? É a primeira vez que me sinto deste jeito, inseguro e com medo do desconhecido (a primeira de muitas, iria descobrir depois).

Três...
Por outro lado, aqui está ficando mesmo desconfortável. E estou meio cansado da vista. Talvez sair não seja tão ruim assim...

Dois...
Mais um movimento brusco e o próprio corredor parece projetar-me mais alguns centímetros adiante. Vejo uma luz.

Um!
Finalmente saio, começo a chorar. Nasci.