quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ele vem

Ele vem. Eu sei que vem. Vem quando a gente menos espera. De madrugada, no trabalho, na caminhada matinal pela praia, durante os sonhos. Vem devagar, em partes, às vezes fragmentado, muitas outras sem sentido. Parece que não conecta uma coisa na outra, parece que não vai dar, que vai faltar ou que não tem liga, mas vem. Vem durante o passeio com o cachorro, vem durante uma cruzada de olhar ou de perna, vem num segundo. Precisa ser apreendido, domado, entendido. Escrito. Enquanto não vem a tona, à tela, fica ali. Indo e vindo. Não nos deixa em paz, absorve, invade. Precisa ficar livre, solto. Começa com uma frase. É o pontapé inicial. Sei por aí se vai ter fim. E começo. Vem de dentro, pode começar com um sentimento, uma sensação, um acontecimento. Pode ser uma noticia de jornal, um papo de cozinha, uma visita inesperada. Pode ser numa viagem qualquer. Interna ou externa. Pode ser num texto. Numa leitura. Na leitura com certeza vem. A leitura abre, liberta, instiga, mexe, remexe e o obriga a vir. Quando vem não dá para impedir. É como uma dor forte, incontida. É como um pum que precisa sair. Não dá para esperar. Fica martelando o tempo todo. A frase, a palavra, o som. Tem de ser repetido baixinho até o momento de ser digitado. Aí sim, parece que fica claro. Que faz sentido. Meu maior medo é de ele não vir mais. De desaparecer de mim. De nunca mais voltar. As vezes fica dias sem aparecer, assustando, provocando. Outras vezes vem com tudo, sem anunciar, sem mesmo querer. Vem e invade. Toma toda a atenção. Dispersa o resto e se torna prioridade. Tem de cuidar, agradecer, aproveitar, distribuir, para que continue vindo, firme e forte. Preciso. Dá trabalho, cansa, esgota, exaure. Tem de fazer sangrar como diz Caio. Mas o prazer que dá não tem igual. Não tem do que reclamar. Muito pelo contrario, não dá pra viver sem.

carmem maia

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Felicidade

As bocas se descolaram, deitaram cada um para o seu lado suados. O repertório era conhecido. Bebiam e já no carro a mão subia nas coxas dela, no elevador,mais beijos, o decote desabava, brincavam que não ia dar tempo, fazia parte, entravam sem sapatos para não acordar o filho e iam direto para o quarto.
Se conheciam tão bem que pareciam que adivinhavam o que o outro estava pensando. Ela perguntava por perguntar, muitas vezes já sabia a resposta. Ele por sua vez não perguntava. Quando o viu pela primeira vez corou. Seu irmão levou o amigo novo da faculdade para jantar em casa. Ele comia bonito, mastigava várias vezes, nunca falava de boca cheia e nem colocava o cotovelo na mesa. Fino, como a mãe gostava de dizer. Ele por sua vez reparou na maneira que ela o olhava, variando entre olhos muito abertos e as vezes de lado. Empostou a voz, consertou a postura e pensava bem antes de falar. Assuntos políticos, econômicos, coisas de quem tinha uma opinião sobre o mundo.
A cintura dela, fina, e os seios redondos contrastando com um sorriso de aparelho e sardas, o deixaram desconsertado. Até então só conhecia as mulheres que pagava juntando o dinheiro da mesada, de dois em dois meses, pois fazia questão das mais caras, que também são as mais limpas, dizia seu pai. Aos poucos ela amadureceu, entrou na faculdade e ele esperou.
O casamento foi planejado pelas duas famílias, com gosto. Ela ainda tinha o mesmo rosto e apesar do corpo não ser mais o mesmo, o deixavam enciumado. Podiam dizer que provocavam inveja. O apartamento ganho no casamento ajudou, viviam com folga. Viagem para o exterior, todo ano. A meta deles agora era um carro novo, um jipe, forte e imponente.
Hoje era dia de aniversário de casamento. Os presentes de ambos devidamente comprados em segredo. Ele já tinha planejado levá-la em um restaurante caro, aquele que eles nunca iam. De manhã se beijaram mais demorado do que o habitual, ele cumpriu sua rotina matinal, de terno foi para o trabalho. Ela tomou banho, colocou a roupa de ginástica e foi para a academia.
Mas no trabalho a secretária já tinha sido avisada que ele hoje ia para Barra do Piraí visitar um cliente, mas se a mulher ligasse, falasse que ele estava em reunião, para que não ficasse preocupada com o jantar a noite. Na academia suas amigas, pensaram que ela estava fazendo massagem e depois no salão se preparando para grande noite.
No motel ele abriu a caixa e entregou um anel para a filha do chefe, pois diante a ameaça de contar tudo fora o único jeito de amansar o gênio da menina. Um anel mais bonito que o dela. Ela em uma quitinete, esperava nua com whisky no copo, o amigo da faculdade, que no último reencontro da turma conseguiu tudo o que ela havia lhe negado quando estava noiva. De noite o jantar foi ótimo. Ela linda de preto, comeu ostras de entrada, lagosta no prato principal e souflé de framboesa de sobremesa. Ele de blazer, pediu foie grois, cherne com espuma de alho poró e mousse de chocolate.

Patricia

domingo, 25 de outubro de 2009

Espuma - versão final - Lais Pimentel

Espuma

I
A decisão de se matar tinha sido tomada com cuidado e critério. A idéia amadureceu durante uma noite de insônia, durante as horas passadas contando estrelas no terraço. O que mais tomou o tempo de Malvina foi a escolha da maneira de se despedir da vida. Tiro, pular de uma ponte, gás, acidente de carro? Ela conversou muitas vezes com um grande amigo médico, assistiu a séries policiais, procurou informações na internet. Não queria sentir dor. Queria também que a encontrassem inteira e lamentassem o seu triste fim. “Por que uma mulher tão bonita decide dar adeus à própria vida?”, diria o rapaz da perícia, imaginava Malvina.
Tinha que ser sábado à noite. A filha mais velha estaria na casa do pai e, assim, teria a privacidade e a calma necessárias para se despedir de sua casa, de suas memórias e lentamente morrer.

Porque hoje é sábado, é dia de Malvina morrer.

A opção escolhida foi a de cortar os pulsos durante um longo banho de banheira.

Malvina passeia pelos quartos, toca as fotos emolduradas, chora muito em sua despedida mas não há mais tristeza nas lágrimas. Beija demoradamente o retrato do Danielzinho e murmura que, em breve, eles estarão juntos de novo. Danielzinho era mesmo a cara do pai. Agora, na contagem regressiva, ela tinha saudades do ex-marido e, por um segundo, se esqueceu da mágoa. Mas só por um segundo mesmo. Imaginar Daniel com a melhor amiga dela, quer dizer, ex-melhor amiga, fez com que o rancor lhe queimasse o rosto. A dor veio com tanta força que a levou direto ao banheiro. Era chegada a hora.

A espuma borbulhava na banheira como se tivesse vida própria. A espera da morte seria preenchida repensando a curta existência – 42 anos... engraçado... sempre achou que viveria pelo menos o dobro! Imaginava-se cheia de netos espalhados pelo mundo. Ótima desculpa para manter sua agenda de viagens em dia. Reveria os melhores e piores momentos acompanhando o fim das bolhas da espuma. “Vejo poesia na hora da minha morte. Pena que não a tenha encontrado em vida.”, lamenta-se Malvina.

Malvina deixa o roupão cair no chão com o glamour natural das divas. Só agora nota, jogada num canto, uma das bolinhas de borracha que fazem a alegria de Gloria. O poder do olhar que dizia vejo-a-dor-que-você-sente-e-te-amo-sem-limites fizera com que decidisse deixá-la num canil neste fim de semana. Agora, porém, lamentava não ter Gloria ali, naquele instante, para abraçá-la longamente, como fazia quando a angústia era intolerável.
Ela entra sensualmente na banheira. Olha para as estrelas, companheiras dos bons e dos maus momentos e, com a faca dentada do pão, colocada ao lado junto com a taça de champagne, corta verticalmente os dois pulsos. Sem hesitação. Assim é infalível, havia lhe explicado o amigo médico. “Quantas horas terei de vida agora?” – diz Malvina, em voz alta, encantada com a própria voz amplificada na acústica do banheiro.


II

“Daniel? Chegou cedo...”, disse eu, feliz e aliviada em te ver. Desde a morte do Danielzinho, não conseguia ficar muito tempo em casa e principalmente sem você ou a Julia por perto. Mas, Deus, como estava enganada... a razão da tua presença naquele momento iria aumentar a minha solidão, o meu desamparo. “Malvina... senta aqui.” Sentei na tua frente e só aí percebi que você estava transtornado. “Você é a última pessoa no mundo que eu queria fazer sofrer... Se eu pudesse apertar um botão, e voltar ao que era antes, Malvina...” E eu, ainda cega ao óbvio, tentava te consolar! “Meu bem, o que aconteceu com o Danielzinho foi uma fatalidade. A gente fez tudo o que podia...”

Você ficou tão vermelho, mas tão vermelho, que achei que ia ter um troço. “Malvina, você não merece passar por isso... ninguém tem culpa... mas aconteceu.” “Do que você está falando, Daniel? Do que você está falando?” Comecei a sentir o meu corpo amolecer. “Aconteceu alguma coisa com a Julia?” Silêncio teu. Silêncio meu. E a bomba foi então jogada no meu colo. “Aconteceu alguma coisa, sim, mas não com a Julia. Comigo... ”

Senti um soco no estômago. Fiquei parada. Mais do que isso, paralisada de dor. Tive pena de mim, de nós dois, do que fomos. Me veio tudo à cabeça. A primeira vez que nos vimos, “Casa comigo, Malvina”, nossas viagens para acompanhar as corridas de Fórmula 1, as tuas ligações de madrugada quando você viajava sem mim, minha barriga crescendo, primeiro para a Julia, depois para o Danielzinho, o diagnóstico dele, leucemia, a última vez em que nós três nos abraçamos... E a Leila, presente em quase todos estes momentos. Como assim, meu Deus?

Mesmo agora, que meu corpo relaxa, abraçado pela água morna da banheira, sinto novamente o golpe no estômago sofrido quando ouvi, da tua boca, o anúncio do nosso fim. “Quando é que você e a Leila começaram a me trair? Antes ou depois da doença...?” Danielzinho... tão lindo, o meu filho. No aniversário de três anos, acordou indisposto. Manchas pelo corpinho gostoso, inchaço nos olhos, nos gânglios. Meus pulsos ardem agora... mas isso é ínfimo comparado ao que senti ao ver nosso filho definhando. “Mamãe jura que tudo vai ficar bem, né, papai?” “É óbvio que vai. E a gente vai viajar muito pra ver corridas de carro”. Danielzinho imita o barulho de um motor. Quase não tem mais forças para falar. “Brum Brum Bruuuuuuuuum.”

Percebo que a água da banheira está esfriando quando as lágrimas alcançam meu colo. Hora de mais uma taça de champagne. Mais bolhinhas a caminho... Vejo-me refletida na taça de cristal... Ainda sou tão bonita, uma beleza triste, triste. Morro sem antes envelhecer... Detesto água fria. Nem o sangue que agora tinge as bolhas da espuma da banheira amorna meus últimos momentos de vida. Quanto tempo ainda me faltará?

III

Hoje Malvina tem consulta marcada. Oficialmente é consulta mas, para mim, trata-se mais de um encontro, uma oportunidade de não ser apenas o sempre correto, eficiente e atencioso clínico geral, o médico da família Furtado.

Deixo sempre o horário seguinte vago para ficar à vontade com ela. Poucas, pouquíssimas, foram as vezes em que ela aceitou tomar um café à tarde. Malvina não é boba. Sabe que eu a desejo. Sempre muito elegante, muito íntegra, nunca sinalizou que percebesse minhas intenções só que uma mulher sabe quando é desejada.

Acompanhei de perto, como médico e amigo, todo o drama do câncer e morte do Danielzinho. De início, achei que o menino iria sobreviver. Estive presente, consultei especialistas, procurei novidades nos tratamentos, me coloquei à disposição mesmo quando o protocolo pedia privacidade para aquela família que se desfazia a olhos vistos.

A morte do filho, a traição de Daniel com a sonsa da Leila, o fim do casamento. Uma sucessão de traumas para Malvina. E, para mim, o que mais doeu foi não poder tê-la abraçado com o calor que merecia para que ela se sentisse segura para se desmanchar em lágrimas.

Nos últimos meses, ela marcou mais consultas do que o normal. Conversávamos muito no meu consultório. A Dinah sabia que eu não deveria ser interrompido por ligações bobas. Só emergências de verdade. Tínhamos um ritual. Eu preparava um expresso na minha máquina Lavazza e batíamos longos papos. Começava sempre com um ar de médico mas em segundos era um fã assumido. Mesmo na dor, Malvina não perdia o porte de princesa, uma elegância inquestionável, fria, segundo algumas mulheres invejosas, como a minha ex, por exemplo.

Malvina precisava de um homem mais velho como eu cuja experiência tinha ensinado o que era merecedor de atenção nesta vida. Alguém como ela, uma mulher sensível porém equivocada na escolhas que fez. Casou-se com o homem errado e errou na escolha da confidente. A morte do filho foi uma cachorrada da vida. Cachorrada, não, pois Malvina é amante dos animais. Foi simplesmente uma putaria. Daí eu nunca ter questionado seu súbito interesse por assuntos tão mórbidos. A perda de um filho deve levar muitas mulheres para um lugar sombrio, na busca pela compreensão desta separação irreversível e cruel. Malvina queria saber o que sente alguém que morre. Os que morreram, clinicamente, e voltaram, contam do tal túnel, da luz forte que se aproxima. Como a medicina investiga estas sensações finais.

Registros históricos garantem, por exemplo, que quem é decapitado ainda tem segundos de consciência após a queda da cabeça no chão. Ou seja: a cabeça vê o próprio corpo separado dela! Malvina ouvia atentíssima. Nunca a vi tão interessada em algo. E queria detalhes: tiro na cabeça, no peito, envenenamento, cortar os pulsos, se jogar de uma ponte, uma batida proposital de carro. Chances de sobrevivência, seqüelas, casos clássicos...

Não a poupava de detalhes. Eu me valia da minha condição para contar-lhe histórias colecionadas em anos de prática médica. Nunca tive tanto orgulho de ser quem sou. Mas, nesta sexta-feira, quis ser mais ousado. Não resisti. Dei-lhe um presente. Algo mais íntimo.

“Um presente, René?”
“Gostou? O perfume te agrada?”
“Não sinto cheiro algum. Meus sentidos estão mortos, acho...”
“Um dia, Malvina, prepare um bom banho e use esta espuma. Quero que você se sinta abraçada e protegida por mim e relaxe, relaxe de verdade. De alguma maneira, espero que possa te ajudar a se sentir bem.”

IV

Daniel teve uma ótima idéia ao fazer uma clarabóia em cima da banheira. 1, 2, 3, 4... O Danielzinho adorava contar estrelas e ria quando eu fingia que me assustava quando ele apontava para elas! “Não aponta com o dedo, menino! Vai nascer uma verruga na ponta do seu nariz!” Ele ria, ria, dava gargalhadas com este teatro todo.

Os cachorros da vizinha começaram a algazarra de sempre. Deve ser duas da manhã, então. Eles são pontuais... A Gloria fica louca com esta conversa canina do lado da nossa casa. Ela faz uma expressão de curiosa, de intrigada. Não foi fácil deixá-la no canil hoje de manhã... Ela percebeu que tinha algo de derradeiro dessa vez. Sempre digo: “Mamãe vai viajar e volta logo para te buscar.” Desta vez não falei nada. Quem será que ficará com ela?

Não me arrependo de não ter deixado bilhete pra ninguém. Melhor assim. Estão todos encaminhados, cuidando de suas próprias vidas. As que realmente me interessam, ocuparam o meu tempo. Daniel, Julia, Danielzinho... Leila... Estranho... não consigo me lembrar direito do rosto da Leila agora... a lembrança está embaçando... Me lembro bem da sua voz, dos conselhos bombásticos, da nossa sintonia, “eu ia te ligar agora!”, “Jura? Tô boba!”. A Leila é agora a voz de um rosto desfocado...

Sinto uma dor no peito... um enjôo...

Que lua linda, linda, linda!!!! Cheia, enorme, não dá nem para olhá-la direito... que brilho é esse, meu Deus?

Meus dedos estão enrrugadíssimos... Será que a Julia vai continuar a minha cara? Será que vai envelhecer e se parecer com a velhinha que nunca serei?

O céu já não está tão estrelado... Parece que enquanto vou contando, as estrelas somem, como as bolhas da espuma que aos poucos se desfaz em torno de mim.

Morro nua. Levo apenas a aliança de casamento e os dentinhos, um da Julia e um do Danielzinho, no colar. Morro casada e mãe. Já estou morta há tempos. Nada me move, nada me tira do ponto morto. Daniel ia gostar desta frase... Ponto morto... Não vejo um amanhã que justifique acordar mais um dia. Será que a Julia vai me odiar por antecipar meu fim? Será que se lembrará sempre de mim?

Confio mais na memória de René. Ele será fiel a mim até após a minha morte. Pena que não fui capaz de retribuir o sentimento dele. Cogitei mas fiquei na intenção.

Espero que ele não se sinta traído por eu ter usado dos seus conhecimentos para planejar minha morte. Meu bom René... Até consigo sentir o cheiro do expresso italiano que preparava sempre que nos encontrávamos no consultório dele. Se eu me concentrar no aroma do café quentinho talvez consiga parar de tremer de frio. Café, café... Odeio sentir frio...

Adorava dormir abraçada com o Danielzinho. Ele se encaixava perfeitamente nos meus braços. Não teve tempo de crescer e ficar desconfortável no colo da mamãe.

Que moleza boa...

As estrelas voltaram! 35, 36, 37... 38...
O Daniel sempre dormia enquanto contávamos estrelas... o Danielzinho, não. “Não aponta com o dedo, menino!”

A luz da lua se reflete nas bolhinhas que resistem. Parece que estou cercada de estrelinhas. Precisava agradecer novamente ao René pela espuma de banho. Que perfume delicioso... Tem cheiro de felicidade, de cama aconchegante, de abraço...

Olha o ta-ma-nho desta lua... Ela parece crescer mais e mais... Nunca vi lua tão cheia e tão baixa no céu...

Rio de Janeiro, outubro de 2009

Paródia de Em Busca do Tempo Perdido, por Lais Pimentel

Eu, Madalena, 52 anos, acabo de tomar um chá. De cogumelos. Tem mais de uma hora isso. Ou, meio minuto, sei lá. Agora, não me lembro mais. Sei que foi tempo o suficiente para ser arremessada contra a parede. Uma parede cheia de fotos de Alain Delon, Brigitte Bardot, Jean Paul Belmondo... todos jovens, lindos, no auge. Que tu est belle, Bardot...
Tem um cheio de anos 70 no ar...
Me viro de frente para a parede, cheiro cola Polar pertinho do meu nariz, cola com patchouli. Tudo tão familiar, tão íntimo. Só não me lembro a que quarto pertence esta parede.... A onda deste chá foi um tempo perdido. Sou uma Madalena arrependida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Férias

O gato olha para o passarinho na folha, que tenta ficar em pé. Escorrega. Meu coração se acelera. Para falar a verdade eu não gosto de pássaros e nada que tem penas. Parecem bolas de algodão, macios por fora e vazios por dentro, com pontas finas, bicos e pés quebradiços, tão frágeis como nunca tivessem deixado de ser ovo. Hoje pela manhã vim para a casa da minha tia, liguei para minha prima perguntando o que ela ia fazer. Mais um dia de férias. Ela falou vem para cá. Eu sabia que me convidaria, fiz uma mala, por que quando venho, sempre fico além do que deveria. Meus pais até me visitam, como em uma colônia de férias. Nessa casa cheia de gente, posso escolher, ler fotonovelas da prima mais velha, ir a praia com a prima do meio, brincar na rua com os vizinhos e a prima caçula, minha melhor amiga. Sempre que venho aqui fico sendo mais uma filha. Meus tios tratam todos iguais, nas tarefas e nos luxos, como fazer unha com a manicure que vem em casa. Minha mãe acha que eu sou criança, mas aqui todas fazem. Ontem de noite, depois do pique esconde brincamos de salada mista, foi minha primeira vez. Só pedi pêra e maçã, o garoto que eu gosto é o mesmo que a minha prima caçula, mas não contei para ela. Hoje vou arriscar, quem sabe não caio com ele. O único beijo de ontem foi o que a minha prima do meio deu no menino sebento que mora aqui em frente. Eca. Tomara que hoje os meninos sejam só o meu primo, o amigo dele e os dois irmãos que moram depois da esquina. Vou pedir para minha mãe trazer mais roupas, quero ficar aqui até o fim das férias, lá em casa eu fico sozinha e eles brigando. Ai! O passarinho escorregou! O gato pegou ele com a boca! Não encosto mais nesse gato.

10 Segundos de calor e emoção

Fátima Figueiroa

Me deu um frio na espinha ou no estomago. Este frio que sobe ou desce; não sei se no estomago ou na espinha, talvez nos dois. O mesmo da roda gigante no parque de diversões. Mistura de medo e emoção. Fiquei exposta; o rosto quente, a nuca fervilhava, as mãos tremiam. Minha preocupação era de que os outros percebessem, certamente iriam perceber alguma coisa no meu estado sendo transformado, mas não sabiam o que era. Foi quando me vi com um sentimento diferente por aquele homem durante uma decisão que tínhamos que tomar. Constatei um sentimento, paixão. Fiquei assustada com a minha reação.
Não tinha me dado conta desta emoção, trabalho intenso somente focado no dia a dia e derrepente nasce um forte sentimento, por alguém que já convivia e não tinha percebido que poderia ter paixão. Este tempo, de coração acelerado, parecia que não mais acabaria.
Ao concluirmos a decisão com a data e hora do que tínhamos que resolver operacionalmente, tive uma crise de ciúme inesperada por mim mesma. Crise esta que incluía uma mulher do grupo de trabalho que interferiu na decisão, sendo apoiada por ele.
Levantei subitamente, fiz uma cara de indignação. Todos perceberam, mas acharam que meu impulso era raiva, por ser dela uma opinião contrária a minha e a decisão de mudar o dia do evento.
Cerimonioso com a situação e sentindo-se dividido na questão, mesmo concordando comigo, ficou ao lado da mulher. Passei o maior recibo de ciumenta para ele (depois soube que ele já estava interessado em mim, mas eu não percebia, ele escondia)
Outra pessoa que trabalhava na equipe, amigo próximo, me olhou e disse sorrindo; você esta com ciúme dele? Eu disse, eu? Você está louco! Ele é que está todo derretido com a Marisa, concorda com ela em tudo, até mesmo no que pode atrapalhar o trabalho dele e facilitar o dela. Mas acredito ser importante este agrado dele para ela, alguma produtividade deve contar. Foi uma gargalhada geral, todos me olhando e concluindo que a minha cara de raiva era de ciúme.
A situação ficou insustentável; virou baderna. A conclusão final ficou a meu favor em relação à data, ele todo vaidoso, parecia um pavão. Eu com o rosto quente o coração disparado; um calor insuportável subindo pelas costas.
Meu segredo, até então descoberto por mim naquele momento, ficou totalmente exposto a todos; nem pude fazer, após esta deliciosa descoberta, um período de sedução às escondidas para dar mais emoção.

Expulso do Paraíso ou Todo fim é um começo

(Gisela)

Dez...
Comecei a entrar em desespero depois de perceber que os movimentos que pareciam apertar as paredes do cômodo tornaram-se mais freqüentes.

Nove...
Tinha a sensação que este cômodo, onde fui feliz nos últimos meses, estava me mandando embora. Por que será que estou sendo expulso? O que eu fiz de errado?

Oito...
Nem sei como vim parar aqui, mas não quero sair. Aqui me sinto seguro, afinal, tenho tudo o que preciso: comida, água, aquecimento e uma voz de fundo que me traz uma paz indescritível.

Sete...
De uns tempos para cá comecei a notar que o ambiente parecia menor e as paredes deslocavam-se de forma a me colocar para fora. No começo, estes movimentos ocorriam com pouca freqüência, no máximo uma vez por dia, mas agora praticamente não param.

Seis...
Lá vem mais um empurrão, muito mais forte desta vez. Sinto as paredes me apertarem e me jogarem para um corredor escuro e muito estreito – aliás, como nunca notei este corredor antes?

Cinco...
Acho que o corredor é estreito demais, não vou conseguir passar por aí, mas as paredes se fecharam e não tenho como voltar. Estou preso e ouço gritos do lado de fora.

Quatro...
Tenho muito medo do que vai acontecer, do que me espera lá fora. Como vou conseguir sobreviver? Será que vão gostar de mim? É a primeira vez que me sinto deste jeito, inseguro e com medo do desconhecido (a primeira de muitas, iria descobrir depois).

Três...
Por outro lado, aqui está ficando mesmo desconfortável. E estou meio cansado da vista. Talvez sair não seja tão ruim assim...

Dois...
Mais um movimento brusco e o próprio corredor parece projetar-me mais alguns centímetros adiante. Vejo uma luz.

Um!
Finalmente saio, começo a chorar. Nasci.

domingo, 18 de outubro de 2009

Segundos, por Lais Pimentel

O Daniel teve uma ótima idéia ao fazer uma clarabóia em cima da banheira. 1, 2, 3, 4... O Danielzinho adorava contar estrelas e ria quando eu fingia que me assustava quando ele apontava para elas! “Não aponta com o dedo, menino! Vai nascer uma verruga na ponta do seu nariz!” Ele ria, ria, dava gargalhadas com este teatro todo.

Os cachorros da vizinha começaram a algazarra de sempre. Deve ser duas da manhã, então. Eles são pontuais... A Gloria fica louca com esta conversa canina do lado da nossa casa. Ela faz uma expressão de curiosa, intrigada. Não foi fácil deixá-la no canil hoje de manhã... Ela percebeu que tinha algo de derradeiro dessa vez. Sempre digo: “Mamãe vai viajar e volta logo para te buscar.” Desta vez não falei nada. Quem será que ficará com ela?

Não me arrependo de não ter deixado bilhete pra ninguém. Melhor assim. Estão todos encaminhados, cuidando de suas próprias vidas. As que realmente me interessam, ocuparam o meu tempo. Daniel, Julia, Danielzinho... Leila... Estranho... não consigo me lembrar direito do rosto da Leila agora... a lembrança está embaçando... Me lembro da sua voz, dos conselhos bombásticos, da nossa sintonia, “eu ia te ligar agora!”, “Jura? Tô boba!”. A Leila é agora uma voz com um rosto desfocado...

Tô sentindo uma dor no peito... um enjôo...

Nossa! que lua linda, linda, linda!!!! Cheia, enorme, não dá nem para olhá-la direito... que brilho é esse, meu Deus?

Meus dedos estão tão enrugados...

Morro nua como nasci. Levo apenas a aliança de casamento e os dentinhos, um da Julia e um do Daniel, no colar. Morro casada e mãe. Já estou morta há tempos. Nada me move, nada me tira do ponto morto. Daniel ia gostar desta frase... Ponto morto... Não vejo um amanhã que justifique acordar mais um dia. Será que a Julia vai me odiar por antecipar meu fim? Ela será a minha melhor lembrança para o mundo. Minha única.

Não. O René vai se lembrar de mim, será fiel até após a minha morte. Pena que não fui capaz de retribuir o sentimento dele. Até pensei mas ficou no pensamento...

Espero que ele não se sinta traído por eu ter abusado dos seus conhecimentos para planejar minha morte. Meu bom René... Até consigo sentir, agora, o cheiro do expresso italiano que preparava sempre que nos encontrávamos no consultório dele. Se eu me concentrar no aroma do café quentinho talvez consiga parar de tremer de frio. Café, café... Odeio sentir frio...

Adorava dormir abraçada com o Danielzinho. Ele se encaixava perfeitamente nos meus braços. Não teve tempo de crescer e ficar desconfortável no colo da mamãe.

Que cansaço de tudo...

As estrelas se multiplicaram! 35, 36, 37...38...
O Daniel sempre dormia enquanto contávamos estrelas... o Danielzinho, não. “Não aponta com o dedo, menino!”
Precisava agradecer novamente ao René pela espuma de banho. A luz da lua se reflete nas bolhinhas que resistem. Que perfume delicioso... Tem cheiro de felicidade, de cama aconchegante, de abraço...

Olha o tamanho desta lua... nunca vi uma lua tão cheia...

45 anos em 10 segundos

Suguei com toda minha força. Aspirei com fé e vontade. Toda energia estava voltada para aquele momento. O gosto era de esperança. Não deixei escapar uma gota sequer. Não quero ter deixado. É minha vida que estava ali. Naquele recipiente cercado de cuidados e proteção. Incolor. Insosso. Que de inofensivo não tem nada. Não foi nada parecido com o que eu estava esperando. Tanta expectativa, tanto medo. Sugo com mais força, olho para a parede e vejo a foto das minhas filhas, felizes, sorridentes, saudáveis. Peço coragem e me cobro paciência. Tempo, tempo. Quando tudo isso vai acabar? Quando vou poder ir embora livre e inteira? Não sei se volto a ser assim tão inteira. Não sei se quero voltar a ser quem era. A fazer as mesmas coisas repetidas vezes. Penso nos últimos 45 anos e nos próximos que espero ter pela frente. Fecho os olhos e me lembro daquele olhar que nunca me esqueço. Ele, 20 anos mais velho do que eu, na frente da sala de aula, olhando daquele jeito desconcertante. Aquele mesmo olhar que ele ainda me dá, quase 20 anos depois, quando sabe que estou prestes a gozar. Ele faz questão de parar, um segundo ou dois antes, e me olhar. Gosta de me ver assim, entregue. Preciso da lembrança daquele olhar agora. É o que me faz ter vontade de continuar. De sugar com com mais vontade, me dá mais tesão puxar assim fundo. Cobro um pouco de sensatez numa hora como essa. Não sei como posso estar pensando em prazer, mas é exatamente nisso que penso. E na sequencia, penso nas duas gravidezes. Na felicidade de ver a barriga crescer todo dia. Nos batimentos do coração que me faziam acreditar que a vida vale a pena e que tudo é possível. Penso também nas várias separações. Nos dois ou três casamentos. Nos outros filhos perdidos, abortados. Penso nas viagens que fiz e nas que ainda quero fazer. Nos livros que li e nos que ainda quero escrever. Penso em sushi. Vontade de comer o que até agora era proibido. Desejo do proibido. Não deve ter passado mais de 10 segundos. Sugo uma vez mais, agora ainda com mais vontade. Novamente ele me vem à cabeça. Estremeço e o médico me pergunta se está tudo bem. Eu digo que sim com o polegar. Só preciso dele olhando para mim. Um pouco mais de paciência. Pronto, acabou. Agora, o silencio impingido. O confinamento, isolamento necessário que me obriga a parar e pensar. Escutar meu próprio corpo. Meus pensamentos. Preciso desse silencio. Daqui pra frente, 10 segundos todo santo dia para não esquecer de lembrar quem sou, do que gosto, quero e espero.

Carmem Maia, outubro de 2009

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A outra labuta

- Beth, é você?



Os sons da diarista na casa lhe traziam um alento: ela não estava tão só.



O relógio da tela do computador marcava 22h30 quando o segurança, meio constrangido, veio lhe perguntar até que horas ficaria. Não havia mais ninguém no prédio, ele precisava apagar as luzes. No escritório pairava um profundo silêncio e ela produzia, desenfreada: assinava papéis, carimbava documentos, despachava projetos, imprimia planilhas, respondia e-mails da diretoria, em um transe eficiente. Assustou-se com a hora avançada, embora fosse um susto confortável e familiar.



- Beth?



- Oooooooiiii?, gritava a outra lá de dentro. Já acordou?



Chegara em casa faminta e exausta. Veio quase desmaiada no taxi, o motorista de sempre, que sabia a temperatura do ar que ela gostava, a rádio que queria ouvir, o trajeto que preferia, e sempre a acordava gentilmente ao chegar no edifício. O porteiro da noite lhe abria a porta do elevador, com o uniforme impecável e uma disposição irritante.



O apartamento escuro a aguardava feito bicho de estimação acuado, após um dia inteiro sozinho. Ela acendia todas as luzes, ligava o canal de notícias 24 horas, jogava no microondas o que havia para comer na geladeira. E tudo parecia saltitar em sua direção, abanando o rabinho e pedindo atenção.



Entrava no banho quente. A água batia no seu couro cabeludo, nuca, ombros. Os olhos fechados sentiam tudo doer, até o que não era físico. O melhor momento do dia era aquele, debaixo do chuveiro quente. O melhor e o mais doloroso.



- Quer que eu esquente seu leite? O jornal está em cima da mesa. Soube do senhor do 703, que teve um piripaque no coração? O meu filho sumiu de novo por três dias, mas já voltou, com rabo entre as pernas. A mulher disse que ia embora dessa vez, não adiantava ele chiar. Estão lá, resolvendo. Não estou conseguindo tirar a mancha daquela blusa azul, o que foi aquilo? - Ela providenciava seu bem-estar e trazia notícias do mundo lá fora. Fora do seu.



Para variar, demorara para conciliar o sono. Ficou um tempo no sofá, com o controle remoto na mão, caminhando a esmo pelos canais. “Remoto controle”, diria Adriana Calcanhoto. Percorreu com os olhos, sem ânimo, as prateleiras lotadas de CDs. Lembrou que o ouviu, pela última vez, no carro dele, na viagem a Mauá. Deve ter ficado no porta-luvas, na serra, no passado da reconciliação que não se deu. E o presente, o que era, além de um remoto controle remoto?



- A senhora quer que eu cozinhe o quê?



Não havia pensado em nada em especial, ela podia decidir. Estava atrasada, tinha que correr. Não pôde ouvir o resto da história do filho, nem da neta nascida há 3 dias. Saiu com gosto de menta e cheiro de protetor solar 60. O jornal, dobrado debaixo do braço; dois livros que não conseguia terminar de ler na bolsa e a sacola da academia, no ombro oposto. Qualquer coisa, que ela ligasse para o trabalho.



Ao bater a porta, restaram os passarinhos cantando na janela da sala, e o leite já frio, em cima da mesa.



Gabriela Sandes

Tipos de Narradores -

Tipologia de Norman Friedman, no livro Ponto de vista na ficção.

Narrador onisciente intruso: Tem a liberdade de narrar à vontade, adotando um ponto de vista divino, para além dos limites de tempo e de espaço. Um eu que tudo sabe, tudo segue, analisa, comenta, critica, sem neutralidade. Esse tipo de narrador não nos deixa esquecer de que estamos diante de uma ficção. Alguns textos de Machado de Assis, por exemplo.

Narrador onisciente neutro: Em 3ª pessoa. A única distinção em relação ao narrador onisciente intruso é que ele não tece comentários. Dos romances realistas no geral. Distinção entre narrar e mostrar: Quanto mais o narrador intervém, mais ele conta. Quanto menos, mais ele mostra. Idéia de retrato. Madame Bovary, por exemplo. E os romances de Henry James.


Narrador-testemunha: Narra em primeira pessoa; é um personagem secundário da narrativa, que pode observar de dentro os acontecimentos e os personagens, trazendo um ponto de vista mais direto e verossímil. Alguém que viveu está contanto. Normalmente nós acreditamos na testemunha. O ângulo de visão é mais limitado, pois ele só pode narrar o que sabe, vê ou ouve. Exemplo: Dois irmãos, Milton Hatoum.

Narradoronisciente seletivo. Diferente do narrador onisciente que sabe tudo sobre todos os personagens. Exemplo: conto "Amor". Não sabemos nada sobre o cego, sobre o marido de Ana, sobre seus filhos. A narração é centrada e se limita a um centro. Os canais são limitados aos sentimentos, percepções e gestos da personagem principal.

Narrador-protagonista: O narrador é o personagem central; não tem acesso ao estado mental das outras personagens; narra de um centro fixo, limitado, quase que exclusivamente às suas percepções, sentimentos e pensamentos. Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, por exemplo.


Mistura: é muito freqüente o autor optar por misturar os pontos de vista. O texto pode vir a ganhar com isso, sobretudo, em verossimilhança. Nenhum Olhar, José Luis Peixoto, por exemplo.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Vida Fácil, a Short Story - mudança de narrador - Marcelo Cortez

Vida Fácil, a Short Story

Vó, o que é uma short story? Vó! Vóvó, eu sei que você está acordada. Não quer responder né. Eu sei que você está acordada, e sei que você está chorando, como chora toda noite. Você acha que eu sou boba, mas eu já tenho 9 anos. Eu sei que você está chorando, e sei até porquê. Você está chorando por causa da mamãe, porque ela está trabalhando toda noite lá em Copacabana. Ela tem que beijar os moços, eu sei isso também, eu vi um dia que eu dormi lá na casa do meu pai, ela estava bem em frente, estava até usando o shortinho jeans igual ao meu. Ela entrou no carro e beijou um homem. Meu pai achava que eu estava dormindo, mas eu não sou boba não, eu estava na janela do quarto e vi tudo. Ele estava na janela da sala e também chorou, igualzinho a você. E eu também já escutei eles falando no telefone, e minha mãe falou pro meu pai que ela tinha contas pra pagar e ia fazer o que tivesse que fazer, que trabalhar em loja não sustenta nós três. É muito ruim beijar os homens que passam de carro, vó? Quando o carro vai embora com a mamãe, eles beijam mais? Por que todo mundo chora? A minha mãe mesmo, desde que separou do meu pai, chora sempre que você sai daqui de casa. Ela chora e diz que era tão feliz, que se pudesse voltar atrás não ia brigar tanto com o papai, sem motivos. Eu também era feliz, preferia morar em Copacabana e ter um pai todo dia, tenho saudades da do Disney Channel, do meu quarto, da casa de Búzios e de sair pra comer fora. E é claro, de todos os adesivos que eu ganhava. Mas o que eu tenho mais saudade é ver minha mãe e meu pai felizes, se beijando. Engraçado que no começo eu não gostava que eles se beijassem. Meu pai diz que vai ser meu pai pra sempre, será, vó? Diz que nosso problema é que somos todas muito bonitas e muito loucas. Você também beijava os moços lá em Copacabana, vó? Não chora tanto assim não ta? Você acha que quando eu tiver contas pra pagar, eu também vou ter que beijar os moços? Ein, vó?

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O quadro por Lais Pimentel - inspirado numa pintura de Edward Hopper

Vinte minutos. Há 20 minutos ela está parada. Será que ela dormiu? Estranho... Minha vizinha da frente estava tão animada, cantarolando e cantarolando alto, para todo mundo ouvir. Acordou cedo, preparou malas, separou um vestido bonito. Escolheu um chapéu bem coquette... Eu estava feliz em acompanhar toda esta preparação. Para onde a levava toda esta explosão de vida? Quem a acompanhava nesta jornada tão alegre?
Pensava nisso quando minha atenção foi desviada para a chegada de um mensageiro no portão da casa dela. A governanta recebe uma carta. Minha vizinha, de corpete colado no corpo – muito ousada ela! – sai do meu campo de visão, saltitante. Some por alguns segundos. Volta. Senta-se na cama com uma carta na mão. À medida que ela lê as palavras recém-chegadas, um cansaço, um torpor, uma sombra de morte, parece tomar conta dela. Minha vizinha não se mexe. Se se mexe, daqui onde estou, não percebo. Nem parece respirar. Será que ela dormiu, desmaiou, morreu?
Agora está ficando chato acompanhar a minha vizinha. A vista que tenho dela parece a de um quadro. E ninguém agüenta olhar o mesmo quadro por 20 minutos.

MÃE SEREIA DE OXÓSSI

Marcos Freitas

Trago a pessoa amada em três dias.
O folheto preso ao poste fazia nascer em mim uma esperança até então esquecida. Cheguei completamente trêmula àquele sobradinho antigo da Rua do Catete. Esperavam sentadas em um banco mulheres elegantíssimas; óculos escuros, colares, bolsas e anéis da mais alta sociedade.
“Lúcia Barreto de Macedo Negrão”, disse em voz baixa ao rapaz que julguei ser o recepcionista. “Pois não, a senhora já pode entrar. É o último quarto do corredor”.
Mãe Sereia era uma preta azulada, usava uma roupa branquíssima, o pescoço cheio de guias. Pedi sua benção, sem saber se aquele era o protocolo adequado. Mandou que me sentasse, tinha a voz bem rouca.
“Teu coração está sedento, meu bem. É mal de amor que te aflige”.
Naquele instante pensei em tudo que o amor representava para mim. Como, meu Deus! Como eu queria ser amada, nem precisava ser para sempre! Ao menos por um instante ouvir “Eu te amo”.
Um filme passou pela minha mente: os rapazes que desejei na juventude, mas que por medo de rejeição, renunciei. Outros, tantos outros, adúlteros, cruéis, covardes. Brincaram com o amor, o trocaram pelo prazer. Cambada de devassos que hoje assistiam a minha ruína. Acreditei na paixão verdadeira, e a mim ela nunca se apresentou. “Eu faço tudo o que for preciso”.
Mãe Sereia pegou em minhas mãos. “Maldição, minha filha. Obra de feitiçaria. Só tem um jeito de reverter esse tipo de coisa, e é rebatendo essa macumba”. Não tive coragem de pedir detalhes... Eu, amaldiçoada?
“Cinqüenta reais, o resto é comigo. Não precisa se preocupar, meu bem. O homem que tu ama estará na sua porta em três dias. Ou menos”.
Abri a bolsa aflita, dei 100 reais, “para não ter erro”. Não conseguia acreditar em tudo o que estava acontecendo: um amor não-correspondido, uma maldição e agora minha única chance de reverter aquilo tudo.
Descendo a rua, veio a crise de consciência. Gargalhei de mim mesma e do que fiz naquela manhã. Foi quando lembrei, como num estalo, de meu velho pai. Homem sábio, coração puro escondido atrás do terno opaco e sem vida. Lembrei de nós dois, sentados assistindo Annie Hall, e de sua frase solta ao final da sessão: “O amor existe dentro de nós”.
Sentei e chorei.

escuridão

nuvens carregadas pairaram sobre a cidade por todo o dia. saí do trabalho e fui me encontrar com paolo. cheguei ao apartamento dele, uma cobertura em obras, ainda todo detonado. uma parte do teto era de vidro, por onde podia-se observar o reflexo das luzes da cidade nas plúmbeas nuvens baixas. da varanda via-se bem próximo um morro majestoso e o corcovado. bebemos. queríamos sair, não sabíamos pra onde. resolvemos ir a uma vernissage no parque lage a convite de marta. no caminho, situações engraçadas nos faziam gargalhar descontroladamente. a bebida exibia seus primeiros efeitos. pegamos um táxi e quando descemos a chuva era suave. entramos no parque cercado por seus jardins exuberantes. ao fim de uma alameda sinistra repleta de grilos escandalosos atingimos a exposição. o ambiente era inadequado à permanência de muitas pessoas que se espremiam pelos salões. sem a chuva se espalhariam pelos jardins. uma grande mistura de pessoas e estilos incompatíveis dificultaram nossa identificação de que havíamos ou não acertado na escolha. atravessamos as obras. na penumbra de uma das salas, um feixe de luz vindo de um teto alto iluminava uma esfera que pendia e balançava levemente sobre uma serragem vermelha incandescente que continha a circular sombra negra do objeto. após conseguir desvencilhar meu olhar hipnotizado, saímos para o bar que ficava numa tenda ao lado, ainda mais repleta de gente devido à chuva, ao som e aos pequenos sanduíches e bebidas que eram distribuídos. pedi uma cerveja. um anão me serviu. ao seu lado outros tantos, mais de dez. os atendentes eram todos anões. exalavam felicidade e simpatia. paolo conversava em italiano com marta que apareceu subitamente. tentei entender seu diálogo sem sucesso. neste momento desabava um temporal que, aliado à música, evocaram em mim um efeito entorpecedor. a água começou a invadir a tenda pelos lados, por cima, por baixo. sufocado, saí correndo sob a chuva para ver uma instalação que ficava num prédio ao lado. uma sala fechada com uma cortina negra na entrada. dentro, a escuridão absoluta era preenchida por um vento forte e um zumbido agoniante. o escuro me apavora. não sabia se entrava, faltava-me coragem. enfrentei meu pânico e entrei mesmo aterrorizado. alguém esbarrou em mim e um berro gutural jorrou do fundo da minha garganta seguido pelo grunhido estridente de uma mulher ridícula. diversos anões entraram na sala. corriam alegremente ao vento ruidoso, iluminados por seus celulares na sala escura. tinham uma experiência onírica. saindo, encontrei-me com paolo e marta, que coincidentemente estavam lá dentro, ainda assustados com o berro que alguém havia dado. a escuridão, o medo do imprevisível, mexeram com nossas emoções reprimidas. inebriados e encharcados, saímos da exposição e fomos a um restaurante. nas mesas, casais monótonos, grupos de amigos, de animados velhinhos. lá fora o mundo era o mesmo de sempre.
Rogério.

Tensão entre bananas

Gisela

PARTE I

Será que meu pai vai voltar?

Todo domingo é a mesma história: meu pai me acorda para irmos juntos à feira. Não sei por quê, mas não temos carrinho de feira, então ele leva duas grandes sacolas de pano. Meu pai diz que devo ir para ajudá-lo e eu me sinto muito importante.

Atravessamos a feira sempre na mesma ordem, comprando nas mesmas barracas, seguindo a lista que minha mãe fez. Começamos por tomate, pepino, alface. Depois passamos para batatas e cebolas, sempre os maiores volumes. E então vem minha parte preferida: as frutas. Acho todas lindas, coloridas, cheirosas.

O moço da barraca de frutas sempre me dá uma “provinha” de manga ou qualquer outra fruta da época. É o ponto alto do nosso passeio.

A esta altura, as sacolas já estão abarrotadas com as compras que vão lotar a geladeira e a cesta de frutas em cima da mesa, demonstrando fartura, como meu pai tanto preza.

Papai está demorando tanto...

Parte das batatas será consumida no almoço de hoje mesmo, já que domingo é o dia de batata-frita lá em casa, no almoço festivo que minha mãe ficou em casa preparando.

Finalmente chegamos à última etapa da jornada: a barraca das bananas. Uma barraca super-especializada, vende somente bananas, mas de uma variedade enorme. É também a barraca que fica bem em frente à rua que percorremos para chegar e sair da praça onde fica a feira.

Mas afinal, cadê meu pai?

Ao lado da barraca, meu pai me posiciona entre as duas sacolas, que deposita no chão com cuidado para não amassar as compras, e diz “já volto, vou buscar as laranjas”. Faz um sinal para Seu Manoel, o dono da barraca, eu imagino que seja para cuidar de mim.

E fico lá, esperando, tensa, olhando para os dois lados, me perguntando quando e se meu pai vai voltar.

Eis que depois de um tempão (deve ter passado meia hora) ele surge ao longe, carregando o saco plástico com a dúzia de laranjas que se transformarão no meu suco ao longo da semana. Chega perto, me dá um beijo, eu abro um sorriso. Antes de ir pra casa, vamos ao botequim da esquina comprar a esperada coca-cola (também só permitida no almoço de domingo), enquanto eu pergunto: “papai, posso vir de novo na semana que vem?”


PARTE II

Será que ela está bem?

Todo domingo é a mesma história: acordo cedo, a lista da feira já está pronta, feita pela minha esposa na noite anterior. Chamo minha filha, que levanta animada (não entendo como uma criança pode se animar com um programa destes), e vou fazer a minha única tarefa doméstica: ir à feira.

Claro que eu preferia ficar dormindo até mais tarde, ou ler jornal, ou ir à praia, ou não fazer nada. Mas até que ter escolhido esta tarefa tem as suas vantagens: é apenas uma vez por semana, e consigo comprar o que e quanto eu quiser (sem fugir muito da lista, claro), pois gosto de fartura para não parecer pobre.

A idéia de levar minha filha junto foi da minha mulher, para que ela pudesse fazer o almoço de domingo com mais calma. No início achei que iria atrapalhar, mas ela fica tão feliz de me acompanhar que acabei gostando também. Minha parte favorita é quando o rostinho dela se enche de alegria ao ganhar um pedaço de manga ou outra fruta da época na barraca de frutas.

Cadê este troco, preciso ir logo.

Tenho que comprar um carrinho de feira urgente, mas minha mulher acha que não precisa, que devíamos economizar para outras coisas. As sacolas ficam muito pesadas no fim da feira, minha mão dói, minhas costas também, e olha que ainda sou novo.

Aí sempre tenho que deixar minha filha com as sacolas quando vou pegar os últimos itens da lista, geralmente ovos ou laranjas.

É melhor deixar na barraca de bananas, pois já é meio caminho pra casa, e o Seu Manoel , dono da barraca, está aqui há anos. Além disso, ela já está bem grandinha, já pode ficar uns minutinhos sozinha.

Até que enfim! Não, não precisa de outra sacola, me dá neste saco mesmo.

Ela não deve se importar em ficar sozinha, são só três minutos (hoje eu contei), é bom pro “desenvolvimento da independência” da criança (não é assim que os psicólogos dizem?). No final das contas, quando eu chego, ela abre um sorriso tão gostoso que só pode ter gostado da experiência.

Dou um beijo nela, vamos comprar a bendita coca-cola do almoço de domingo no botequim da esquina e ela me pergunta: “papai, posso vir de novo na semana que vem?”


PARTE III

Vai uma banana aí, madame?

Toda domingo é a mesma história: este rapaz chega com esta menininha, coloca as sacolas no chão, uma de cada lado dela, e vai comprar alguma coisa.

Na primeira vez, ele me perguntou se eu podia “dar uma olhada”, assim como se pede pra alguém olhar seus chinelos quando se vai dar um mergulho no mar. Tudo bem, o que me custa, se ele comprar as bananas comigo...

Ela fica com uma carinha tão preocupada. Acho que ela tem medo do pai não voltar. Não sei por que ela pensa isso, já devia estar acostumada.

A banana-nanica tá melhor esta semana, madame.

Eu tenho uma filha também, mas é mais velha. Lembro pouco de quando ela tinha esta idade. Eu quase não consegui acompanhar, sempre tive que acordar de madrugada para montar a barraca nas feiras de bairro. Quando ela chegava em casa da escola, eu estava dormindo.

Será que minha filha também sentia minha falta, como esta sente a do seu pai?

A menina me olha como se me pedisse socorro. Eu não sei direito o que fazer, mas sorrio, às vezes ofereço um pedaço de banana, ela nunca aceita.

Uma dúzia por três, duas por cinco, só na minha mão.

O pai realmente é rápido, leva menos de cinco minutos. Quando chega perto, aquela ruga no meio da testa de uma menina tão nova se desfaz, ela abre um sorriso e ele lhe dá um beijo. Sempre sinto uma pontada neste momento, não me lembro do último beijo trocado com a minha filha.

O rapaz me agradece e eu me seguro para não pedir: “moço, deixa ela de novo na semana que vem?”

domingo, 11 de outubro de 2009

A conquista de Felizardo

Fátima Figueiroa

De mediador do possível romance de Pilar com Alvarez, Felizardo passou a conquistador.
Garçom, nordestino, morador da Rocinha, solteiro em busca de uma esposa. Viu em Pilar a possibilidade de uma conquista. Mesmo sabendo que mulher não ama, cisma. Partiu para o investimento.
Aproveitando as idas dela ao bar para encontrar Alvarez, fez disso seu desafio para sedução. Conversava com ela, dava conselhos tirando a idéia fixa nele.
Em uma das conversas que tinham, Felizardo dizia ;Pilar ele é muito mais velho, vai te dar trabalho daqui a pouco, já pensou? Vai ficar doente, ranzinza cheio de manias. Pense em alguém mais novo para seu companheiro.
Pilar retruca, é muito difícil encontrar um homem que queira ter responsabilidades e compromissos com uma mulher.
Que nada, você às vezes tem alguém próximo e nem percebe .
Será? Não vejo ninguém, a não ser meu chefe, mas é casado e só quer se aproveitar de mim nas horas vagas.
Felizardo, mais que depressa planejou flores anônimas para entregar no trabalho dela. Mandou um buquê de rosas vermelhas com bombons. Foi o sucesso do dia. No final da tarde ela chegou ao bar contando a novidade para Felizardo.
Recebi flores hoje, vermelhas com bombons sonho de valsa, estou super curiosa, será que foi Alvarez, o que você acha? Não Pilar, ele você pode descartar.
Será que foi o safado do meu chefe?
A brincadeira anônima de Felizardo durou um tempo considerável para enlouquecer Pilar de curiosidade; ela já estava apaixonada pela situação, só falava nisso.
Felizardo começou a ficar preocupado, estava virando confidente, nem passava por ela a possibilidade de ser ele o admirador. Pensou. Vou mudar a estratégia, farei convites diretos.
No dia seguinte, ele rapidamente já iniciou a conversa diretamente no convite; vai ter um churrasco na Rocinha domingo, você quer ir? Quem sabe você conhece alguém para preencher seu coração, vamos?
Ela pensou... Você acha que tem esta possibilidade? Sim, claro vai ter muita gente.
Domingo chegou, Pilar foi toda refestelada, rebolativa e perfumada.
Felizardo todo arrumado, cheio de gentilezas recebeu Pilar como a primeira dama da sua vida. Ela percebeu que ele estava diferente, apresentava para todos os amigos com orgulho. Daí começou um clima , fazendo charme, segurava o copo com o dedo mindinho levantado, fazia cara de modelo na frente do espelho, poses e mais poses, caipirinhas à vontade.
Pensou ela. Isso não vai dar certo. Felizardo estou ficando tontinha você cuida de mim? Foi o suficiente para ele ficar todo cheio de si.
Lógico Pilar, cuido de você com o maior prazer, fique ao meu lado se apóie em mim.
Daí em diante foi só chamego. começava a paixão inesperada e surpreendente para Pilar.

Dr. René (conto ESPUMA) - Lais Pimentel

Hoje Malvina tem consulta marcada. Oficialmente é consulta mas, para mim, trata-se de mais um encontro. Travo uma luta antiga para parecer o sempre correto, eficiente e atencioso clínico geral, o médico da família Furtado. Deixo sempre o horário seguinte vago para ficar à vontade com ela. Poucas, pouquíssimas, foram as vezes que ela aceitou tomar um café à tarde. Malvina não é boba. Sabe que eu a amo e a quero há anos. Mas, sempre muito fina, muito íntegra, nunca sinalizou que percebesse minhas intenções mas uma mulher sabe quando é desejada.

Acompanhei de perto, como médico e amigo, todo o drama do câncer e morte do Danielzinho. De início, achei que o menino iria sobreviver. Estive presente, consultei especialistas, procurei novidades nos tratamentos, ofereci meus conhecimentos e minha presença, mesmo quando o protocolo pedia privacidade para aquela família que se desfazia a olhos vistos. A morte do filho, a traição de Daniel com a sonsa da Leila, o fim do casamento. Uma sucessão de traumas para Malvina. E, para mim, o que mais doeu foi não poder tê-la abraçado com a força que merecia, a solidez que precisava para que ela se sentisse segura para desabar, se desmanchar em lágrimas.

Nos últimos meses, ela marcou mais consultas do que o normal. Conversávamos muito no meu consultório. A Dinah já sabia que eu não deveria ser interrompido por ligações bobas. Só emergências de verdade. Tínhamos um ritual. Eu preparava um expresso na minha máquina Lavazza e batíamos longos papos. Eu começava sempre com um ar de médico mas em segundos era um fã assumido. Mesmo na dor, Malvina não perdia o porte de princesa, uma elegância inquestionável, fria, segundo algumas mulheres invejosas, como a minha ex, por exemplo.

Malvina precisava de um homem mais velho como eu cuja experiência ensinou o que é merecedor de atenção nesta vida, como ela, uma mulher sensível porém equivocada na escolhas que fez. Casou-se com o homem errado e errou na escolha da confidente. A morte do filho foi uma cachorrada da vida. Cachorrada, não, pois Malvina é amante dos animais. Foi simplesmente uma putaria. Daí eu nunca ter questionado seu súbito interesse por assuntos mórbidos. Certamente a perda de um filho deve levar muitas mulheres para um lugar sombrio, na busca de entender esta separação irreversível e cruel. Malvina queria saber o que sente alguém que morre. Como a medicina investiga estas sensações finais. Registros históricos garantem que quem é decapitado ainda tem alguns segundos de consciência após a queda da cabeça no chão. Ou seja: a cabeça vê o próprio corpo separado dela! Malvina ouvia atentíssima. Acho que nunca a vi tão interessada em algo. E queria detalhes: tiro na cabeça, no peito, envenenamento, cortar os pulsos, se jogar de uma ponte, uma batida de carro proposital. Chances de sobrevivência, seqüelas, casos clássicos...

Não a poupava de detalhes. Eu me valia da minha condição para contar lhe histórias colecionadas em anos de prática médica. Nunca tive tanto orgulho de ser quem sou. Mas, nesta sexta-feira, quis ser mais ousado. Não resisti. Dei-lhe um presente. Algo mais íntimo.
“Um presente, René?”
“Gostou? O perfume te agrada?”
“Não sinto cheiro algum. Meus sentidos estão mortos, acho...”
“Um dia, Malvina, prepare um bom banho e use esta espuma. Quero que você se sinta abraçada e protegida por mim e relaxe, relaxe de verdade. De alguma maneira, espero que possa te ajudar a se sentir bem.”

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Hoje acordara a mesma.

Já era tarde, o sol estava alto e as pessoas andavam rapidamente, os pés quase encostando nela. Às vezes se sentia mais próxima dos cachorros, eles pelo menos a cheiravam. Os ossos doíam e a cabeça pesava, a única coisa que colocou no estomago na véspera foi a garrafa de cachaça que comprou, ali mesmo, na rua. Precisava se levantar e ir para a sombra, estava com sede. Com muito esforço caminhou até um banco embaixo da árvore mais próxima. Sentiu o sangue fluir e se alinhou sentada. Olhou ao redor procurando algo para beber. Há poucos metros um menino e sua mãe comiam um lanche. Já sabendo, esperou. Logo jogaram os restos fora. Pegou o que o não queriam e pode matar parte de sua sede. Mais refeita, abriu o saco que carregava com ela, virou tudo no chão. Caíram garrafas vazias, restos de panos, uma escova, tampas de pote e uma boneca loura. Abriu seu sorriso sem dentes e começou a embalar nos seus braços cantando cantigas incompreensíveis. Algumas pessoas perceberam o que se passava e lhe lançaram olhares de compaixão. Ela tão alegre nem percebeu. Foi anoitecendo e a paisagem mudou. O movimento diminuiu, quase não passava ninguém. Mas por sua vez os bancos em volta começaram a ficar ocupados. Alguns rostos ela conhecia. Preferia não ficar lá. Depois de tantos anos estava fraca, era difícil garantir um lugar na praça. Não forças para competir. Se afastou dali e foi caminhando para uma rua quase sem iluminação, escura e tranqüila. Sentou-se, tomando fôlego para mais uma noite. Foi quando percebeu que não estava sozinha. Viu alguém encolhido no chão, chorando. Era uma mulher loura. Foi se aproximando com cuidado, quando estava perto sorriu, era ela, de cabelos louros, a quem embalava todos os dias. Ajoelhou e a colocou no colo como fazia sempre.

Patricia

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Antonio e o Vulto

Antonio e o Vulto

Ursula Wetzel

É segunda-feira e chove muito. Lucio chega ao escritório um pouco afobado, por pouco não se atrasa. Abre o guarda-chuva no canto da sala e comenta com a voz levemente alterada:

- Rapaz, eu levei um susto! Quase atropelei um cara na Linha Vermelha!

- Hum?

- É. O cara passou correndo na minha frente. Eu acho que era um daqueles vendedores, sabe? A pista do lado de lá, de quem vai para o Centro, estava parada e o cara estava com um pacote na mão. Devia estar com pressa para não perder freguês.

Ninguém levanta a cabeça ou incentiva o prosseguimento do relato. Na sala trabalham quatro pessoas. Antonio é o chefe. Ele não aprova conversa desnecessária. O trabalho é coisa séria e quem não gostar do seu jeito que procure outro lugar. Como o emprego anda difícil, a empresa paga razoavelmente bem e ainda oferece plano de saúde, ninguém se atreve a contestá-lo. Não que ele seja mau, mas usa demasiadamente a ironia como forma de comunicação.

Às nove horas Inês chega novamente atrasada. Lucio e Ana percebem logo o rosto inchado. Antonio levanta-se da cadeira, aproxima-se de Inês e dispara, curto e grosso:

- A Sra. anda dormindo muito tarde.

Na hora do almoço Antonio come um sanduíche no bar, volta para a mesa, abre o jornal e lê durante o tempo que lhe resta. Ninguém lhe faz companhia. O restante do grupo, que sempre almoça junto, tem em Antonio um dos assuntos prediletos de conversa.

- Coitada da mulher dele. Já pensou ser casada com um homem assim? Não deve nem reparar quando a mulher corta o cabelo.

- Ele parece que toma suco de vinagre em vez de café da manha. Está sempre com aquela cara fechada. Acho que nunca ouvi uma gargalhada sua.

Ao final do dia o grupo se retira. Primeiro Inês, apressada e ansiosa por evitar a possibilidade de mais um comentário de Antonio; depois Lucio e Ana, com dois secos - Boa Noite. O telefone toca, Antonio atende. É sua mulher, aos prantos:

- Junior foi atropelado. Está com a perna quebrada, em observação no hospital do Fundão. A sorte é que a pista estava engarrafada e o carro vinha devagar. Sabe o que ele estava fazendo? Vendendo bala na Linha Vermelha. Na Linha Vemelha! Como se morasse na favela! Tudo para conseguir o dinheiro, que você disse que não ia dar porque ele tinha que aprender a dar valor às coisas! Os outros sempre tem que dar valor a alguma coisa. Sempre os outros! E você, dá valor ao quê, dá valor a quem?

Antonio apenas responde que está indo para o hospital. No hall do elevador é um dos últimos a deixar o escritório. O espelho reflete um vulto.


Os personagens: Antonio e O Vulto
Antonio
Constante, controla, tem a pele grossa e é indiferente à dor dos outros, apresenta pouca alteração de humor, tem grande dificuldade em elogiar, sua mais espontânea [expressão] é o desprezo ou deboche, protege os que ama silenciosa e veementemente. A visão de mundo é demonstrada de forma negativa, mas sem rodeios, sem lamúrias. Raramente se queixa. Se expressa através de pequenos desprezos, como se sua opinião fosse fato. Não se pedem coisas a ele. Ele não abre espaço.

Vulto
Sexo: indefinido (parece homem)
Cor: parece moreno (mas esta sob chuva forte e eu observo do interior do meu carro. É quase noite e ele está na pista de sentido contrário. No trânsito, correndo entre os faróis parados e pendurando sempre o que parece ser um pequeno objeto no espelho retrovisor dos carros).
Peso: magro, leve
Altura: um pouco mais alto do que um Fusca e mais baixo do que um Land Rover.
Idade: parece adolescente, quase adulto
Onde foi visto: Linha Vermelha (próximo ao complexo da Maré)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Amor - Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

- O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

- Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

- Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro "Laços de Família", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Macumba

(Marcos Freitas)

Foi no elevador que Lúcia conheceu seu príncipe encantado: corpo atlético, pele morena contrastante com os olhos azuis, educadíssimo. Deu bom dia e comentou o clima lá fora. Logo descobriu que o gato morava no nono andar. Resolveu investir: só saía de casa maquiada e perfumada, até mesmo para ir à padaria. “Vai que eu encontro aquele pedaço de mau caminho pelo corredor”.
E dizem que não existe amor à primeira vista: paixão platônica! Passou a sonhar com o homem que, através de conversinhas com o porteiro, descobriu se chamar Sérgio. Um dia decidiu atacar. Colocou uma roupinha infalível, pegou uma xícara vazia e bateu na porta do seu amado. Coração na boca. De samba-canção, Sérgio ficou completamente sem ação diante daquele truque barato de vizinha vagabunda. Não quis deixar a moça constrangida e a convidou para entrar. Doou o saquinho de açúcar e jogaram conversa fora. Já era um grande avanço.
As semanas foram passando e Lúcia estava cada vez mais louca de tesão. Foi Rose, a empregada, quem disse à patroa que conquistar o verdadeiro amor era simples e fácil: bastava colocar, em um prato virgem, pétalas de rosas brancas e uma vela vermelha. Quando a vela se apagasse, era só deixar o prato na encruzilhada e esperar três dias. “Macumba forte, funciona até com mulher feia”.
Lúcia fez conforme instruída. Para garantir, foi pessoalmente a uma mãe de santo pedir o amor de Sérgio. A negra disse que não podia dar errado, e que ela mesma daria mais um empurrãozinho, “cinqüentinha e o resto é comigo”.
Os dias passaram demorados, no terceiro Lúcia estava cheia de esperança, ansiosa, completamente irracional: a que ponto chegou seu amor doente e instantâneo.
Subia e descia o elevador como se fosse uma criança travessa. Dava indireitas ao porteiro, rodava como uma barata zonza pelo hall do prédio, por um momento pensou em bater no apartamento daquele que já considerava o seu homem.
De repente, num estalo, que percebeu um tumulto em frente ao prédio. Multidão concentrada. Lúcia perguntou, quase sem voz, o que estava acontecendo.
Suicídio. Olhou, incrédula, para o corpo falido. Ouviu-se um grito de horror.

Personagens


LÚCIA

40 e poucos anos, solteirona desesperada. É uma mulher extremamente carente, inquieta, gorda por tantas noites desesperadas em frente ao pote de soverte. Acredita em príncipes encantados, apaixona-se facilmente. A cada romance, se reconstrói inteira ao gosto do escolhido. Tem uma vida estável financeiramente, mas possui hábitos suburbanos: adora bater papo com a empregada, com o porteiro, com as vizinhas, adora uma cartomante e uma boa liquidação. Seu sonho de casar com o homem perfeito é o que move esta personagem em busca da felicidade.

SÉRGIO

É o vizinho por quem Lúcia se apaixona. Corpo atlético, pele morena, olhos claros, educadíssimo. Não se sabe ao certo se é realmente o homem perfeito, porém Lúcia o idealizará. Ao final do conto, subentende-se um suicídio.

O TRONO

Antonella Catinari



Após a primeira vez, perdi definitivamente a vergonha de me sentar no trono da Uruguaiana. Ao contrário, a convivência com Seu Jorge acabou demonstrando que as coisas são assim mesmo. Alguns sentam-se nos tronos e outros ajoelham-se e os reverenciam. O que não significa que eu fosse digno de que Seu Jorge se ajoelhasse a meus pés. A cada dia em que eu parava por ali — sim, tornou-se um hábito, posso até dizer um vício, engraxar os sapatos diariamente com Seu Jorge na hora do almoço —, menos digno daquele trono eu me sentia.
Cheguei ao cúmulo de me desfazer de sapatos que não fossem de couro, substituindo-os freneticamente por outros desse material, a fim de justificar minha ida diária ao encontro de meu mais novo e único amigo: Seu Jorge. Que eu então já passara a chamar de meu rei, de São Jorge.
Entreguei todos aqueles velhos sapatos a ele: meu melhor engraxate. Que apenas esboçou um muito obrigado, sem qualquer marca de servilismo ou gratidão cristã. Apenas um agradecimento, aliás, polido e sincero como todos deveriam ser.
Meu rei ficava ajoelhado enquanto eu, seu súdito, o observava do alto. Carapinha branca, riso bonachão e olhar digno, sempre a me fazer calar com suas precisas observações sobre a vida. Certa vez perguntei sobre o colar de contas verdes, único e permanente adereço. Era de Oxossi, guerreiro das matas. Seu Jorge era ogan. Não sei agora repetir fielmente o que isso significa, mas essa função casava de modo perfeito com a trajetória de nossa amizade. Que também não sei se é a melhor palavra para definir aqueles encontros marcados de forma tão inexorável em minha agenda interna.
Eis que um dia, porém, uma segunda-feira, para ser mais preciso, ele não estava lá. Estaquei confuso. Será que eu me encontrava na esquina certa? Cheguei até a verificar a placa das ruas: Uruguaiana e Presidente Vargas. Impossível que eu estivesse enganado. Olhei para o relógio. Meio dia e quinze. Nosso horário, estipulado unicamente pelo costume e não por algum acordo verbal. O trono, aberto como sempre, mas — somente após olhar com mais atenção para ele, foi que percebi — com um cadeado lacrando a caixa de madeira onde meu velho engraxate guardava suas preciosidades: escovas, ceras, tintas, panos, flanelas, além do maço de cigarros sempre por terminar e um isqueiro com a estrela do Botafogo, já meio apagada, sem brilho algum.
Ancorado naquela esquina, naquele mar de pessoas, fui jogado de uma vaga à outra, sem controle do que pensava e do que sentia. Um vazio apoderou-se de meu peito, e meus pés sentiram-se literalmente sem chão. Como não sentar no trono após passar um interminável fim de semana sem ele? Como não me distrair com a conversa de meu guia? Como não me divertir com a visão de sua carapinha, que a cada dia diminuía e se tornava mais branca?
Foi quando me deparei com a foto estampada num daqueles jornais de 50 centavos. Estava lá o corpo, o rosto, o inconfundível colar de contas verdes do guerreiro. Jogado no chão, baleado no peito. E, ao lado, a foto do algoz. Puxei violentamente o jornal do alto da banca, joguei os dez reais que trazia na mão para pagar o serviço de meu rei e saí atônito sem pensar em pegar troco ou dar atenção a qualquer grito do jornaleiro.

MONSTRO DA BULGÁRIA MATA ENGRAXATE COM TIRO NO PEITO
Povo prende e quase lincha o assassino do leste europeu

Morreu hoje o engraxate, conhecido como Seu Jorge, após não resistir à cirurgia feita às pressas na madrugada de sábado no Hospital Souza Aguiar, Centro do Rio. Vítima de uma bala perdida, disparada pelo terrorista búlgaro Stoyan Basicov, Seu Jorge foi levado por populares para o hospital, enquanto centenas de pessoas prendiam e quase lincharam o assassino. Nenhum parente apareceu ainda para reclamar o corpo do engraxate, que tampouco portava nenhum documento.
Stoyan Basicov, 35 anos, foragido e procurado pela Interpol, era conhecido como o “Monstro de Sófia”, devido aos requintes de crueldade de seus crimes. Acabara de chegar ao Brasil com um passaporte falso, declarando estar aqui como turista. Hospedado numa espelunca no Centro, escondia-se de contrabandistas de armas de facções rivais e da polícia internacional.
Na noite de sexta-feira, cerca das 22h, Seu Jorge encaminhava-se para a Central, como era seu costume, segundo testemunhas que não quiseram se identificar, quando foi alvejado por uma bala disparada pela arma do búlgaro, em tiroteio travado a cerca de 200 metros do Ministério do Exército. Nenhum dos outros meliantes foi preso, e as autoridades búlgaras ainda não se pronunciaram sobre o caso.


Na Uruguaiana, as vagas humanas agora arrebentavam-se contra as rochas de meus pensamentos, que explodiam em dúvidas. Que será de mim sem meu trono? Que será de mim sem meu rei? Quem serei eu agora?

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Hoje acordara outra.

Hoje acordara outra. Sentia fome, foi para a mesa de café. Quando sentou-se ele logo percebeu. Tentou disfarçar, perguntou se ela tinha tomado seus remédios, ela respondeu com uma gargalhada. Ele não insistiu. Preferiu se arrumar para não chegar atrasado. Avisou, não sei se volto a noite. Ela jogou a xicara na parede. Gritou para que ele não a deixasse, não a largasse para ficar com aquela vagabunda. Ele desanimado já pensava em desistir, e se tudo se repetisse? E se no dia seguinte ele não a encontrasse com vida? Já bastava sua irmã, não podia passar por isso mais uma vez. Fazia meses que se dedicava a ela, a tirou do sanatório, a acolheu em casa. O que mais um grande amigo poderia fazer? Mas estava apaixonado, o namorado insistia em passar pelo menos uma noite juntos. Falou, eu volto, não vou te deixar e bateu a porta.
Para Miriam era o pior, acabara o ritual da manhã. Pegou um cigarro, o primeiro do dia e foi levando desordenadamente os pratos para a cozinha. A outra depois de oito anos voltava com força, debochada, caprichosa, invadia Miriam. Até o filme ela nunca tinha percebido o quanto sua estrutura era frágil, como eram frágeis as páginas do texto. As palavras escritas saíram pela sua boca, mas não saíram dela. O telefone tocou, era da Record. Perguntando por Miriam, tinha gravação hoje. A outra desligou dizendo aqui não tem ninguém com esse nome. Alegre saiu disposta a conquistar seu amor, no seu roteiro inventado.
Procurou nas ruas, sem descanso, sem comida, sem água. Os cabelos louros emaranhados e o robe rosa lhe faziam uma princesa triste, de pés descalços. Procurou olhando em cada rosto. Anoiteceu. Por fim se entregou, sem forças e deixou o corpo escorregar até o chão. Chorou. Chorou pelo o amor que não existia, por ter o mesmo destino de sua mãe, por não saber quem era.
Mas não estava sozinha, no fundo do beco tinha mais alguém. Usava roupas escuras que a disfarçavam nas sombras. Na cabeça um lenço amarrado. Aos poucos se levantou vacilante segurando um saco. Veio caminhando de lixo em lixo, alcançando o que podia e mastigando com uma boca sem dentes. Ali era a sua casa. Chegou perto e se agachou ao lado de Miriam. A olhou com os olhos perdidos e com a mão magra acariciou seu rosto. Como se a conhecesse, a mulher negra a colocou no colo e falou bem baixinho, não tenha medo minha filha. E se enlaçaram em um abraço.


Patricia



Personagens


1.   Miriam, 27 anos, atriz desempregada, solteira. Fez um único filme há cinco anos que nunca chegou a ser exibido. Tem sérios problemas mentais. Alguns medicos diagnosticaram esquizofrenia, outros disseram que era apenas bipolar. Tem acessos de euphoria durante o dia quando sai interpretando seus personagens pela cidade. Não tem endereço fixo. Seu ultimo namorado era um homem de 53 anos. Ex-produtor de cinema procurado pelo TCU para prestar contas de dinheiro público captado e não realizado. A mãe de Miriam, Juçara, mora no interior do Paraná, esteve internada algumas vezes e não tem contato com a filha. Atualmente mora de favor na casa de um amigo gay no edificio Copan em São Paulo e faz bicos na TV Record.


2.   Deparo-me com uma mulher deitada numa calçada, ao lado da grade do prédio da Biblioteca Nacional, sob uma grande árvore, nela recostada. Três grandes sacos plásticos, repletos de qualquer coisa, a acompanham e servem de travesseiro. Olhar perdido, parado, voltado para o infinito. Nada suplica, pouco se movimenta. Sua situação de abandono, deve ser suficiente para que ali receba algo, um resto de comida. Para que transeuntes se compadeçam e tomem a benvolente atitude de de lhe jogar uns míseros trocados. Em meio a sujeira, a dejetos, ela parece estar na rua para nos lembrar da desigualdade e ausência de compaixão. Negra, idade indefinida, pode ter quarenta, talvez cinquenta, nem magra, nem gorda, nem alta, nem baixa, roupas escuras, talvez sempre as mesmas. Quase invisível.