quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Geração Flex


Naquele último sábado do mês de julho, Godofredo sentiu uma vontade incontrolável de caminhar ao ar livre. Inquietude contida. Seguiu de carro até o parque e, logo foi abordado pelo guardador de rua oferecendo preço mais camarada do que o estacionamento.
Livre do carro, naquela límpida manhã de inverno, caminhava sentindo a fria aragem atravessar-lhe a roupa, passos rápidos como recomendava o cardiologista. Agasalhado pelos pensamentos, lembrava dos tempos de juventude, quando a vida era vivida como elegia. O mês de julho sempre fora difícil para ele. Nem tanto pelo aniversário: pelas lembranças de férias na juventude. Época em que pulsava a vida até no silêncio. Havia comunicação no abraço. Juventude anterior à geração múltipla escolha. Onde andariam os amigos com quem dividia a esquina de outrora?Estariam burguesamente instalados em escritórios com paredes enfeitadas de obras de arte, casas de campo ou quem sabe viagens para Europa? Ou será que ainda resistiam aos apelos do consumismo, do corpo sarado, do uso das drogas, tentando sobreviver no caminho de repartir idéias que acreditavam como ele? Vai saber.
Suando a testa, nariz e camiseta, bateu logo vontade de tomar água de coco. No trailer, o vendedor indagou se ele queria do mais verde ou do maduro. E ele apelou para o colesterol. O vendedor, parecendo mais esperto que todos da idade dele, buscou fruta no fundo do freezer que vigorosamente foi partida num só golpe de peixeira. Desconfiado da destreza do vendedor, Godofredo foi beber água de coco bem longe dali.Estaria diante de alguém acostumado com outros ofícios? Vai saber.
Na volta para casa, parou no Posto e o frentista ofereceu variados artigos de conveniência. Ora, mas o que procurava era encher o tanque de combustível o carro Flex. O jornal, comprou-o para ler mais tarde.
Durante o almoço ele disse uma linha. A diarista, uma página.
E no vaivém da rede, depois do bife ao ponto e da salada verde colhida ali mesmo no seu quintal, comida caseira, feita sem agrotóxicos, pensava como fora uma criança feliz, apesar de ser filho de mãe negra numa época em que o preconceito era enorme. Só assim os medos noturnos não aconteciam com ele, já que com a chegada da noite sabia que ela viria abraçá-lo quando chegava do trabalho. Noite e Bem ficaram associados. Ás vezes ainda hoje, no meio da noite ele a sentia ao seu lado a dizer – meu filho. Vai saber.
No lusco-fusco das horas, o celular tocando devolve atenção de Godofredo, perdida em seu mais novo universo – o cultivo de bromélias e mudas de hortaliças. Como só os profetas enxergam o óbvio, surpreendeu-se com o chamado da filha. Lamuriosa depois de vários dias sem dar notícias, pedia para deixar sua filha caçula ali.
– Só essa noite, pai.
Com essas volubilidades da filha já estava acostumado. Vai saber. Pouco tempo depois, o interfone toca e o porteiro avisa que estavam subindo ela e a menina. Onde andava a chave da casa? E logo, beijos, abraços e uma saída rápida precedida pela única recomendação daquela noite. A pequenina deveria tomar mamadeira de leite antes de dormir. Momento de silêncio. Com o tempo e o costume aprendeu não mais contrariar a filha, que pelo visto brigara com o marido, apesar de já estar no terceiro casamento.
O avô viu o telejornal das oito enquanto a menina recortava revistas e colava numa velha agenda.E quando ela começou a esfregar os olhos, Godofredo preocupou –se em preparar a mamadeira. Só então, perguntou carinhoso:
– Você quer frio, morno ou quente.
A menina de três anos apontou o dedinho:
– Trinta segundos.
Godofredo olhou para a bancada da cozinha e,finalmente matou a charada. Seu mundo de múltiplas escolhas dera lugar aos novos avisos eletrônicos
Assim agia sua neta, a mais nova representante, naquela família, da geração das microondas.

Silvana Vargas

(Ficcionista e poeta, publicou O Certo Sempre Incerto em 2007 pela Oficina do Livro. É co –autora em antologias publicadas recentemente.



Um comentário:

  1. PRO:
    Achei a mensagem final brilhante, 30 segundos, e uma boa amostra de como o mundo muda sem que nos demos conta. Leitura agradável.

    COM:
    Não vejo muita correlação entre o final e o resto da estória, talvez se o personagem fosse exposto a coisas que não são como já foram, ou mesmo ele fazendo tudo como fazia em seu passando, tendo no final a menina o forçando a aceitar o novo mundo em q ele vive porem não quer se adaptar.

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