quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Chuva de verão

Chegou em casa às nove da noite. Exausta! Que dia!
Um temporal arrasou o Rio no final da tarde. A mulher foi pega de surpresa em pleno Aterro do Flamengo. De repente tudo em torno virou água que subiu rápido, infestou o motor e fez morrer o Mercedes.
- Gervázio, o que vamos fazer?
- Ligar pro doutor. A senhora fique calma. Se a água continuar subindo, a gente vai ter de sair pela janela e ficar esperando o resgate em cima do capô. Vamos ter de agir depressa!
Ela alongou o pescoço e acenou a cabeça em todas as direções.
- Isso é um absurdo! Numa área tão importante da cidade!
Recostou-se no banco de couro, olhava as mãos suspensas no ar. Tinha almoçado com o marido no Centro. Em troca, a recompensa: o anel que parecia um quebra-cabeça de ouro branco e amarelo com quarenta e dois brilhantes. Uma jóia que considerou discreta. Chique.
- Socorro, Gervázio! Vamos morrer afogados!
O motorista argumentou que o resgate já estaria chegando. Eles viriam de balsa salva-vidas.
Ela ficou bem contente. Ao mesmo tempo, muito triste. Afagou sua Louis Vuitton...
- Uma sujeira só, Gervázio! Lixo e esgoto. Precisamos nos concentrar. Faça de conta que você é um ourives, que vende ouro e pedras preciosas. Imagine que é um personal stylist. Proteja meu anel e minha bolsa. O que você faria se eu lhe pedisse?...
O motorista segurou os objetos. Deixou cair a própria carteira: documentos, fotos de família e algum trocado, tudo para o fundo do carro. A água atingia a maçaneta.
O trabalho da defesa civil não se limitou ao resgate. A mulher, poderosa, fez com que a conduzissem para um spa urbano a meio caminho de casa. O soldado que a acompanhou na viatura não lhe tirava os olhos: queimada de sol, músculos à mostra e o efeito da toxina botolínica no rosto congelado. Um coquetel estético que impediu o rapaz de arriscar a idade dela.
- O senhor pode parar ali mesmo, no estacionamento daquele shopping, por favor.
Ela retomara o entusiasmo.
Enquanto isso, em terra firme, Gervázio, extenuado, enxugou o suor do rosto e ligou para a patroa. Comunicou-lhe que seus pertences estavam salvos. Abriu então um sorriso de alívio e pensou em correr para casa. A velha avó com certeza estaria preocupada, longe dali, na Baixada. Espiou o monitor de tevê na vitrine da loja e assistiu a chuva invadir casas em toda a região metropolitana. Porcaria de vida!

Agora, quase madrugada, sem dar atenção ao som do noticiário que vem da elecedê tela plana da suíte, a mulher retira a maquiagem diante do imenso espelho do banheiro. E aplica o ácido retinóico arrematando o procedimento com palmadelas na face.
- Meu bem - grita o marido -, disseram aqui que teve gente que perdeu tudo!
Provavelmente ela não entendeu: como pode perder tudo, quem não tem nada?

Beatriz Castanheira – novembro de 2008

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