quarta-feira, 30 de setembro de 2009

SAGA DE 5 LINHAS

Relacionamentos conturbados no passado indicavam a um e outro dificuldade de viver relação plena. superaram, uniram-se. agregaram amigos e contituíram uma família, desprovidos de convencionalismos medíocres. confiança mútua, sem interdições. um ainda sentia necessidade de conhecer pessoas, de apaixonar-se; o outro, de mergulhar fundo na espiritualidade, isolar-se. ausência em um, essência do outro. um apaixonou-se; o outro, retirou-se. separados, sabiam-se atados indefinidamente.

Rogério.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Uma saga familiar com cinco linhas.

A linha Um era do tipo longilínea e carnuda. A linha Dois era curta, magra e dura. Linha Um e Linha Dois

se casaram e tiveram Linha Três, Linha Quatro e Linha Cinco. As três linhas além de irmãs eram muito amigas, brincavam juntas,

e por vezes se embolavam de tal jeito que Linha Um tinha que socorrê-las.

Mas sua brincadeira favorita era com o pai e a mãe: cabo de guerra. Linha Um e Linha Três de um lado; do outro,

Linha Quatro e Linha Cinco. Até que um dia Linha Dois arrebentou e Linha Um ficou viúva.


Ursula

5 linhas de saga

Se o que me contaram é verídico, tudo se passou mais ou menos assim. De um lado, vieram três num navio. Pai mãe filho.Itália Santos. Do outro,oito irmãos numa fazenda.Interior do Uruguai.De ambos os lados, trabalharam casaram trabalharam amaram trabalharam nasceram trabalharam enviuvaram trabalharam trabalharam.E mais ainda: paixão traição bênção excomunhão.Agora é minha vez: nascer amar trabalhar morrer.

Antonella

domingo, 27 de setembro de 2009

Mais um

Mais um

Sempre deixo o bolo para o fim, já são quarto da manhã, agora só falta colocar a noiva e o noivo. Hoje foi o dia inteiro, enrolando os doces, caramelizando e arrumando as bandejas de prata. Desde que o Arnaldo adoeceu, essa é a minha rotina. Afinal dez filhos e agora a chegada do primeiro neto. As meninas estão em colégio de freira e os meninos em escola pública, foi o jeito. Há três meses fico mais cansada, não contei ainda, que tem mais um a caminho.

Patricia

Uma vida celibatária

Dinha, uma mulher que nasceu em família tradicional mineira, viveu para criar e cuidar dos irmãos, sobrinhos e de seus pais na velhice.
Tornou-se enfermeira, não teve namorado, nunca usou calças compridas, somente saia com combinação por baixo.
Aos 95 anos, com muita energia, saudável e virgem, disse ao médico – Doutor, nunca um ginecologista me examinou, não será agora nesta idade.
Sua vontade foi respeitada por ele.

Fatima Figueiroa

O Verbo ou A saga dos despossuídos

Eu durmo na rua
Tu dormias na rua
Ele dormira na rua
Nós dormiremos na rua
(A)vós dormiram na rua
Ele e ela dormiriam numa cama se pudessem

Antonella

Saga: Geraçoes

Era um ninho de mulheres bem paridas. Avós, tias, afilhadas. Uma sucessao de ancas largas, olhos azeitona, cabelos ondulados, seios fartos. Havia as ingênuas e as desbocadas, as exageradas e as silenciosas, as altivas e as espírito-de-porco - guerreiras, todas. Casamentos desencaixados, asfixiados, combalidos. Gargalhavam, juntas, das suas desgraças. Mestruavam, faziam o almoço, quaravam a roupa. E sentiam-se uma só.

Gabriela Sandes

5 linhas de saga

Se o que me contaram certa feita é verídico, tudo se passou mais ou menos assim. De um lado, vieram três num navio. Pai mãe filho. Itália Santos. De outro, oito irmãos numa fazenda. Dos dois, trabalharam casaram trabalharam amaram trabalharam nasceram trabalharam enviuvaram trabalharam trabalharam. E mais ainda: traição paixão benção excomunhão. Agora é minha vez: nascer amar trabalhar morrer

Antonella

Labuta

Ao abrir os olhos, era ainda noite. Mas o dia já começava. Na casa silenciosa, os sinais do ontem nao tao distante: desordem na sala, pratos do jantar, poeira do chao de terra que entrou pela janela. Resolveria à noite.

Saiu de casa agasalhada e sentou-se no lugar de sempre da van. Viajou calada, meio-acordada, meio-já-sem-sono. O sol raiou dentro do ônibus, para onde correu ao chegar na Central, mas nao conseguiu se sentar. Devia ter vindo na van das quatro horas, pensou.

A dor nas varizes da perna era sua companheira de viagem. As pernas, festejadas anos atrás no bar onde ia beber e dançar. As pernas, que enganchou nas do ex-marido naquela primeira dança, e só largou quando a polícia veio buscá-lo, numa madrugada em que dormiam abraçados.

Chegou ao edifício na zona sul suada e encasacada, com o sol a pino. O porteiro lavava a calçada sem molhar o uniforme. Deram-se bom dia, contaram as novidades, já velhos conhecidos de toda sexta-feira. Comentaram que a chuva viria no domingo e que o tomate subiu que foi uma beleza. Ele contou que o morador do 703 havia sofrido um enfarte na noite de terça, mas a ambulância, graças a Deus, chegara a tempo. Já havia saído da UTI, contara o genro que foi buscar algumas roupas no apartamento, e voltaria para casa no sábado à tarde.

Ela contou que desovaram um corpo na sua calçada na quinta de madrugada. O terceiro, desde que o comando mudou. Os vizinhos disseram que era um rapaz da rua de cima, mas ela nao quis ver corpo nenhum, nem deixou os filhos pequenos verem aquela tristeza.

Ele pediu desculpas pela indiscriçao e perguntou o que era aquilo no seu pescoço, que ela estava andando feito um robô. Ela disse que o médico do posto mandou usar, pela dor nas costas. Custou doze reis, veja que prejuízo! E mandou que ela fosse também ao médico dos nervos. Ela foi, obediente, esperar de novo para ser atendida na madrugada do dia seguinte. Era jovenzinho, esse outro doutor, mas muito atencioso. Passou-lhe um remédio que dava um sono doido o dia inteiro e disse que ela deveria ir para a cama às nove da noite, para deixar de se sentir tao nervosa. Ela teve até vontade de rir, imagine, com tanta coisa para fazer quando chegava em casa... Mas se controlou, para o rapaz nao pensar que era deboche. E agora tinha que subir, já ia dar sete e meia.

A patroa dormia na cama de casal, com o edredom branco que ela alvejou, só os passarinhos lá fora de barulho no apartamento. O dia claro entrava pelo voile fechado. Fez as coisas de sempre: roupa do varal, pia de pratos, ferro esquentando mal, mas nao adiantava avisar. Quando já lavava o banheiro dos fundos, ouviu lá de dentro: "Beth, é você?". Gabriela Sandes

sábado, 26 de setembro de 2009

O último passo.

Este é o momento. Toda minha vida caminhei para onde estou agora; mais um passo e minha jornada estará completa. Felicidade absoluta é pouco para descrever minha emoção. Respiro fundo o ar fresco da manhã e sorrio. Dou então meu último passo. O tempo para. Estou flutuando em minha sala, é maravilhoso, é muito mais que tudo o que eu havia idealizado.. Imagine ter todos os momentos felizes passando por você, todos de uma única vez. Eu me lembro de tudo, de minha filha, linda e inocente, e do dia em que entrei em seu quarto, da primeira noite em que lhe beijei... A corda, a corda me traz de volta para sala, eu sinto novamente o meu peso, as lágrimas que escorrem de meu rosto, meus pés buscando apoio no vazio, a escuridão se aproximando. Penso novamente em minha filha, em suas lágrimas no dia em que me deixou, faz parte, ela vai chorar também no dia do parto. Porém quando ele der seus primeiros passos, ela vai entender. O que eu fiz, eu fiz por amor, eu fiz pela nossa família. Eu me vou agora, só que vou feliz, sabendo que minha vida continua, dentro dela, em nosso filho.

Marcello Schweitzer
Escadaria

... cinco degraus me separavam de um chão. Relutei, não desci. Da minha família só restava o que estava naquele porão. Escuro, sujo. Meu medo naquele lugar, parado. O cheiro de madeira já não era o cheiro das minhas lembranças, onde meu pai, carpinteiro, um dia construiu meu berço. Seis degraus me separavam de um chão... sete degraus e o cheiro de madeira podre.

Marcelo Corrêa

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Saga das Filhas - Felipe Candiota

- MÃE, POR QUE PERDI MEU FILHO HOMEM MÃE?
- FILHA, NÃO CHORE FILHA, VOCÊ TERÁ A CHANCE DE TER OUTRAS FILHAS, EU TAMBÉM PERDI MEU FILHO ANTES DE VOCÊ NASCER FILHA.
- FOI MÃE? MINHA AVÓ ME CONTOU QUE TAMBÉM PERDEU UM FILHO HOMEM ANTES DE VOCÊ NASCER. MÃE, QUE É ISSO MÃE?

Saga familiar em cinco linhas - Laís Pimentel

O primeiro Francisco chega, em Minas, há dois séculos, saído de uma prisão dos Açores. Casa e faz um herdeiro que recebe seu nome. Este Francisco cresce, se torna o maior nome do Direito no país e tem 11 filhos. Um deles mata estudante em tumulto em frente à faculdade criada pelo pai. A lei perdoa. O patriarca, não. Envergonhado, o velho se muda, com a família, para o Rio.

Barulho - Simone Guelman

Abri o olho. Não enxergava. Minha respiração era forte e ofegante, querendo capturar todo o ar que havia. Mexi os braços e as pernas. No movimento, bati com força em uma superfície plana e dura. Estava escuro.
Pensei se estaria vivo, busquei os sons. Ouvi o silêncio do barulho. Era aquilo um silêncio absoluto ou a mistura de sons sem significado? Pensei na analogia com o fato de ser o branco o conjunto das cores.
É esse o limite da nossa compreensão? É quando, no extremo, temos pena de nós mesmos por não acreditarmos em nada que possa servir como consolo, como justificativa, ou que seja capaz de, num milagre, transformar uma tempestade num lindo dia de sol? Difícil esperar um milagre sem acreditar que exista. E, sem essa esperança, como seguir adiante?
Andamos sempre perto da borda, olhando para o outro lado, ignorando o abismo próximo; buscando paisagens que nos desviem o olhar; procurando borboletas, pássaros e flores, como se essas borboletas, esses pássaros e essas flores pudessem definir o caminho, isentar do risco e justificar o cansaço, o medo, a tensão, a loucura… Mas, na hora que tropeçamos numa pedra e damos de cara com o precipício, somem as flores; os pássaros parecem não indicar o caminho e as borboletas voam fugazes nos deixando sem esperança, sem saber como escapar do cansaço, do medo, da tensão e da loucura… E aí é o risco de perder o equilíbrio que perturba, atormenta.
Risco que só aparece depois do primeiro tropeço, quando as cores das borboletas, das flores e dos pássaros ficam embaçadas, como se estivessem escondidas por uma lente fosca, da qual, por incapacidade, não podemos mais prescindir.
Penso e me mexo. Estou vivo?
Os sons embaralhados, a contradição da solidão na multidão. Nada tem significado. E ainda assim respiro ofegante e busco desesperadamente o ar.
Os pensamentos, condição de vida, me sufocam. E essas contradições? Como viver com elas? Respiro ofegante e penso. E se não existissem?
Sinto faltar o ar. Sinto doer o corpo. E estou anestesiado pelo vazio, pela angústia.
Misturo presente e passado, num só tempo infinito, que me esmaga. Ou esmagou? Em que tempo eu vivo? Vivo?

Carta - Simone Guelman

Era a primeira linha da primeira carta que ela escrevia para a sua mãe depois que chegara ao Brasil, terra dos sonhos, livre das perseguições e do frio da Europa. Lembrou do seu futuro – o casamento, a adaptação à nova vida, aprender uma língua estranha, ganhar o sustento de cada dia, contar as histórias e tradições para, finalmente, ver seus filhos e netos bem sucedidos. Chorou de saudades.

Das voltas que a vida dá

Meu avô era pescador. Vivia em uma aldeia na beira da praia. Nem luz elétrica tinha. Mas era muito dedicado e prosperou. Comprou mais barcos, aumentou a casa, mandou meu pai estudar na cidade grande. Formado, voltou para a aldeia e transformou os três barcos e sete ajudantes do meu avô em um próspero negócio, com sede na capital. Pai e filho trabalhavam muito, sem fins de semana ou férias, assim como hoje eu faço. Ontem meu filho me avisou que não quer “esta vida”. Quer mais tempo para ficar com a família, com menos stress. Quer ir morar na beira da praia. Quem sabe pescar.

Gisela

Rota de Fuga - (A saga)

Rota de fuga

Publicitário famoso na década de 70, ativista político, sedutor. 6 casamentos oficiais e 5 filhos registrados. No dia do seu aniversario de 65 anos fugiu de casa. Não avisou ninguém. Largou a mulher de apenas 25 anos com a filha pequena no interior de Minas, para onde tinha se mudado em busca de paz para escrever. Não achou. Foi visto na FLIP em Paraty, recitando poemas para quem quisesse ouvir. Sozinho, parecia feliz como nunca tinha sido.

Carmem Maia
Setembro 09

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Projetos de Vida

Ela estava para receber uma quantia enorme de dinheiro, muito grande mesmo. Decidiu planejar onde aplicá-lo, de modo a realizar antigos sonhos dela e de seu companheiro. O tempo era curto pois queria tudo definido antes de o dinheiro chegar. O foco principal era transformar a casa da serra na sonhada morada.
Construiriam uma piscina e uma sauna na parte plana do terreno, onde o sol incide por todo o dia. Cortariam os pinheiros que deixavam a casa na sombra à tarde, portanto, muito fria no inverno. Reduziriam a quantidade de grama dos jardina próximos à casa para diminuir os mosquitos, cujas picadas infernizavam seus finais de semana.
Colocariam forro de madeira no andar de cima, completando concepção original dele quando ampliara a casa. Providenciariam pintura nova e comprariam móveis confortáveis. O conforto era agora, já bem mais velhos, uma preocupação maior que no passado, quando as obras de expansão foram executadas. Aconchego é o que buscavam.
Juntos não conseguiram idealizar o quarto dos livros e o do som, reiterado desejo dos dois. Mas conseguiram decidir a localização do chalé da escrita, onde ela pensava criar suas histórias, recolhida ao modo de Isabel Allende, na fantasia do romance.
Teriam que correr para suspender a ordem de venda da casa, ainda mais que tinham compradores em vista.
Projetos de vida com planejamento muito atrasado. O tempo não parava de correr. Subestimara o tempo. Queria comprar um apartamento para cada filho, que fosse localizado próximo ao deles, mas ainda teria que ouvir, não só a ele, como a cada um dos filhos. E tinha que decidir o que propor para o entorno da casa da serra. Dependendo do que fizesse, poderia se converter numa ocupação para ele, enquanto as salas da Barra poderiam se transformar em um Centro de Cultura, ocupação para ela. A hora era essa. Mas, como? Calma! Que erro! Ele ficaria na serra e ela no Rio, à beira mar?
Aquele dinheiro inesperado era dela. Estavam além do meio da vida e pensou aplicar o dinheiro no cenário de uma nova vida para ambos - a última parte da vida de cada um, com certeza. Estavam juntos, estava bom, a partir dali seria só saborear. Mas qual! Ele não aceitaria. Com todo esse dinheiro ele não precisaria mais trabalhar e, ainda que só faltasse um par de anos para se aposentar, ele não iria parar. Não pararia nem para fazer uma viagem longa. Era assim e não cederia. Inflexível, manteria o planejado, cumpriria horários e trabalharia até a aposentadoria.
O tempo se esgotara. Questões fundantes não puderam ser decididas a dois. Lamentou, mas não se estressou. Logo chegou a notícia. Ela não conseguira ganhar na Loteria.

Carmem Garcia

Vida Fácil, a Short Story - Aula 2

Short. Shortinho Jeans encravado. A mulher da minha vida, até outro dia minha esposa, fazendo ponto na Atlântica em frente à nossa, minha casa. Ele lá no trono me julga, nascido em berço esplêndido, vida fácil é isso. Minha filha o chama de pai. A filha dela me chama de pai. A conheci com esse mesmo shortinho, no mesmo lugar. Um carro para. Ela entra. Nossos olhos se encontram. Nenhum ciúme do passado, todo do futuro. Eu amo ele, eu a amo. Não a quero mais aqui, mas muito menos ali. Minha família, Dei um short igual pra nossa filha. Nossa short estória.

M. Cortez

A Casa - MAria Helena

O testamento veio como a maior surpresa de sua vida. Herdara a casa que fora de sua bisavó numa pequena ilha na costa da Italia. Iniciou os preparos para a viagem cheia de inquietações que brotaram nela como ervas daninhas. Não sabia lidar com surpresas. Com cuidado, guardou na mala a chave enferrujada da casa.
O mar de um azul profundo circundava a ilha. A casa projetava-se imponente sobre o monte. Parecia um palacete mas por aquelas bandas não era incomum que uma família pouco abastada morasse num lugar como aquele. Algumas daquelas casas foram erguidas pelos monges da região que, no início do século, abandonaram a ilha, ninguém sabe o porquê. Foi então que os moradores compraram os antigos mosteiros e os transformaram em lares.
Sentou-se na praça e teve a impressão que os moradores da pequena vila a olhavam com desconfiança. Ou seria simples curiosidade? Não saberia dizer.
Signora, signora- grita o menino. Quer saber histórias da região? Eu lhe conto por uns trocados. A casa foi comprada dos padres por um tal de D. Giovanni. Era um homem alto, que caminhava com passos largos e olhos sombrios. A farta cabeleira negra que circundava o rosto queimado do sol estava sempre desalinhada. Era um homem duro e acabou detestado na região. Dizem que sua mulher suicidou-se. Depois veio sua nora substituir a falecida, mas adoeceu e morreu, deixando uma menina que foi viver com os tios em outra aldeia. Nunca mais una donna veio para esta casa rosnava D. Giovanni com um certo orgulho pois dizia-se que detestava as mulheres.
Sem mulheres, sem partos e choros uma casa não é um lar. Assim envolta em seus pensamentos ela subiu o monte. Um vento frio arrepiou sua pele. Ela também não tivera filhos. Apos décadas de abandono a casa voltaria a ser ocupada. Como uma mulher sozinha tomaria a iniciativa de ir viver ali?
Abriu a porta. O mofo cobria as paredes rasgadas pelo tempo mas havia dignidade naquele amplo espaço. Ela subiu a escadaria que levava aos quartos. Encontrou seu próprio olhar no espelho intacto da penteadeira que parecia esperar por ela: uma mulher íntegra, madura, quase bela. Jogou os cabelos para trás e se lembrou de D. Giovanni. Sua maldição ficara no passado. Se é que alguma vez existira.

Maria Helena Mossé
setembro de 2009

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A princesa e o Drácula (uma história para minha neta)

Era uma vez uma princesa que não conseguia dormir. Ela então resolveu fazer uma competição entre os príncipes dos reinos vizinhos. Como prêmio, casaria com aquele que conseguisse fazê-la ter uma boa noite de sono.
O primeiro candidato que se apresentou, chamava-se Romeu. Ele tinha uma namorada chamada Julieta. Ia até se casar com ela, mas quando viu a foto da princesa, apaixonou-se e resolver participar da competição. Foi ao castelo da princesa e se apresentou:
- Meu nome é Romeu. Eu vim aqui participar do concurso.
- Você é o primeiro que aparece. Venha ao meu quarto esta noite.
De noite, quando Romeu chegou no quarto, a princesa, ansiosa, lhe perguntou:
- Você vai conseguir fazer eu dormir?
- Vou sim. Vou contar umas histórias muito bonitas. Você vai gostar tanto que vai dormir muito bem.
Romeu leu a primeira história de um autor chamado Shakespeare, mas a princesa não dormiu. Leu a segunda história e a princesa também não dormiu. Quando já era muito tarde, ela disse:
- Você leu lindas histórias, mas eu não consegui dormir. Você não passou no teste.
O segundo candidato que se apresentou chamava-se Hércules. Ele era muito alto e muito forte. A princesa lhe perguntou:
- Você vai conseguir fazer eu dormir?
- Vou sim princesa. Espere por mim hoje à noite no quarto.
De noite quando chegou no quarto, Hércules pegou a princesa no colo:
- Como eu sou muito forte, vou embalar você nos meus braços a noite toda.
Enquanto Hércules caminhava com a princesa nos braços, ia contando histórias sobre os monstros que já tinha matado. Ela ficou tão interessada que não conseguia parar de prestar atenção e não dormiu. Hércules também não passou no teste.
O terceiro candidato a se apresentar era um príncipe com uma capa preta. Ele chegou no castelo já ao final da tarde. A princesa lhe perguntou:
- Você vai conseguir fazer eu dormir?
- Vou sim, princesa. Mas você vai ter que vir comigo ao meu castelo.
A princesa foi com ele. Lá chegando, Drácula mostrou-lhe uma cama muito estreita, feita de madeira escura e forrada com veludo vermelho. A princesa deitou-se e achou a cama muito quentinha e gostosinha. Logo adormeceu. Quando acordou, depois de uma noite inteira de sono, encontrou Drácula:
- Você ganhou a competição e vou casar com você.
Drácula, que já tinha se apaixonado pela princesa, respondeu:
- Eu não posso casar com você. Eu sou o Drácula, durmo durante o dia e fico acordado de noite. Nós não iríamos nunca poder ficar juntos.
A princesa ficou triste. Ela também já estava gostando muito deste príncipe.
- Mas não existe solução?
- Existe sim. Se você enfiar uma espada de prata no meu peito, eu vou deixar de ser Drácula e vou me transformar em um homem normal. Você tem coragem de fazer isso?
A princesa pegou uma espada de prata, enfiou-a com toda a força no coração do Drácula e ele se transformou em um belo príncipe que dormia de noite e ficava acordado de dia.
Os dois se casaram. Como ele gostava muito de vinho tinto, resolveram montar uma vinícola. Assim passavam o dia: cuidando das uvas e fabricando vinho. De noite dormiam agarradinhos na cama de madeira escura, forrada com veludo vermelho. Foram muito felizes.


Úrsula

Geração Flex


Naquele último sábado do mês de julho, Godofredo sentiu uma vontade incontrolável de caminhar ao ar livre. Inquietude contida. Seguiu de carro até o parque e, logo foi abordado pelo guardador de rua oferecendo preço mais camarada do que o estacionamento.
Livre do carro, naquela límpida manhã de inverno, caminhava sentindo a fria aragem atravessar-lhe a roupa, passos rápidos como recomendava o cardiologista. Agasalhado pelos pensamentos, lembrava dos tempos de juventude, quando a vida era vivida como elegia. O mês de julho sempre fora difícil para ele. Nem tanto pelo aniversário: pelas lembranças de férias na juventude. Época em que pulsava a vida até no silêncio. Havia comunicação no abraço. Juventude anterior à geração múltipla escolha. Onde andariam os amigos com quem dividia a esquina de outrora?Estariam burguesamente instalados em escritórios com paredes enfeitadas de obras de arte, casas de campo ou quem sabe viagens para Europa? Ou será que ainda resistiam aos apelos do consumismo, do corpo sarado, do uso das drogas, tentando sobreviver no caminho de repartir idéias que acreditavam como ele? Vai saber.
Suando a testa, nariz e camiseta, bateu logo vontade de tomar água de coco. No trailer, o vendedor indagou se ele queria do mais verde ou do maduro. E ele apelou para o colesterol. O vendedor, parecendo mais esperto que todos da idade dele, buscou fruta no fundo do freezer que vigorosamente foi partida num só golpe de peixeira. Desconfiado da destreza do vendedor, Godofredo foi beber água de coco bem longe dali.Estaria diante de alguém acostumado com outros ofícios? Vai saber.
Na volta para casa, parou no Posto e o frentista ofereceu variados artigos de conveniência. Ora, mas o que procurava era encher o tanque de combustível o carro Flex. O jornal, comprou-o para ler mais tarde.
Durante o almoço ele disse uma linha. A diarista, uma página.
E no vaivém da rede, depois do bife ao ponto e da salada verde colhida ali mesmo no seu quintal, comida caseira, feita sem agrotóxicos, pensava como fora uma criança feliz, apesar de ser filho de mãe negra numa época em que o preconceito era enorme. Só assim os medos noturnos não aconteciam com ele, já que com a chegada da noite sabia que ela viria abraçá-lo quando chegava do trabalho. Noite e Bem ficaram associados. Ás vezes ainda hoje, no meio da noite ele a sentia ao seu lado a dizer – meu filho. Vai saber.
No lusco-fusco das horas, o celular tocando devolve atenção de Godofredo, perdida em seu mais novo universo – o cultivo de bromélias e mudas de hortaliças. Como só os profetas enxergam o óbvio, surpreendeu-se com o chamado da filha. Lamuriosa depois de vários dias sem dar notícias, pedia para deixar sua filha caçula ali.
– Só essa noite, pai.
Com essas volubilidades da filha já estava acostumado. Vai saber. Pouco tempo depois, o interfone toca e o porteiro avisa que estavam subindo ela e a menina. Onde andava a chave da casa? E logo, beijos, abraços e uma saída rápida precedida pela única recomendação daquela noite. A pequenina deveria tomar mamadeira de leite antes de dormir. Momento de silêncio. Com o tempo e o costume aprendeu não mais contrariar a filha, que pelo visto brigara com o marido, apesar de já estar no terceiro casamento.
O avô viu o telejornal das oito enquanto a menina recortava revistas e colava numa velha agenda.E quando ela começou a esfregar os olhos, Godofredo preocupou –se em preparar a mamadeira. Só então, perguntou carinhoso:
– Você quer frio, morno ou quente.
A menina de três anos apontou o dedinho:
– Trinta segundos.
Godofredo olhou para a bancada da cozinha e,finalmente matou a charada. Seu mundo de múltiplas escolhas dera lugar aos novos avisos eletrônicos
Assim agia sua neta, a mais nova representante, naquela família, da geração das microondas.

Silvana Vargas

(Ficcionista e poeta, publicou O Certo Sempre Incerto em 2007 pela Oficina do Livro. É co –autora em antologias publicadas recentemente.



Ruína dos domingos (reescrito) - Vinho - Ar

Um convite informal, venha aqui em casa, para mim foi solene. Estaciono o carro diante do muro. Abro  o portão com seu peso diminuindo meus passos. Quinas se sacrificam ao sol para amparar sombras em jardins escondidos. As manhãs escorrem moles como mingau. Diante da porta, vejo através da janela, a cortina. O que está por trás que não posso suportar?  Dias longos e noites incertas. Um lugar para alguém de joelhos ralados contar estrelas. Entro sem espanto, como se voltasse de um passeio. Quem me recebe tem cabelos longos demais, sinal que não se importa com o que os outros pensem. Mesmo assim me mostra seus trabalhos. Subo as escadas, minhas mãos se apoiando nos veios da madeira. Ancestrais me olham das telas, revigorados, vestidos em impecáveis toalhas de linho.Cenas sobrepostas onde passeiam com suas peles marcadas, mil linhas bordadas de sua próprias histórias. Entre duas dimensões existe um universo. Rasgado, colado, pintado. Segredos que querem se contar. Fico tão pequena que me é familiar, rodapés, botões e moedas. Me escondo embaixo da mesa, sentindo o cheiro da manteiga derretendo no pão e vendo a grade da varanda. Passos ecoam no assoalho. Sou tudo o queria ser, menos adulta. Estou entre as conversas proibidas. Bebês não nascidos, namorados no portão, mortes prematuras, amores incestuosos, lares abandonados, passeios ao luar. Mas ninguém sabia que no verão passado eu tinha escondido as conchas do meu irmão, que por isso colecionava chaveiros. Uma voz conhecida, me chama  e mais uma vez sou convidada, então para almoçar, almoço de domingo.





Vinho.


Uma palavra, um gesto, um olhar. Um tapa, um tiro, um estranhamento. O motivo não saberia. E ele que era como todos, se tornou como outros. O tempo infinito se condensou no momento presente. O olfato se ficou aguçado e os musculos tensos. A fome se estabeleceu como dor. No espelho se viu, era um espaço vazio. Assustada a memória fugiu. Sózinho e ausente de pensamentos, em um canto qualquer esperava. As paredes suavam. Rastejou, no ouvido, as batidas do seu coração marcavam seus passos. Era guiado pelo doce cheiro de sangue. Final de corredor. Ao chão indefeso, amarrado, amordaçado, estava quem o roubou de si. Com a pedra mais próxima, o golpeou. A cada golpe sentia também a dor. Esperava beber a taça que o ódio como espectador lhe oferecia. Agonizando ao lado de sua vítima viu que a taça estava vazia.





Ar

Tudo se passava agora. O ar se tornou um fato, era anunciado nos jornais. O ar que lhe faltava, estava nas letras, nos peitos de todos, por aí. E ele que tanto cuidou para que seu ar não fosse embora, o via sair pela janela, sustentar asas, planos, tirar chapéus das cabeças, ter uma vida que ele mesmo não tinha se permitido. Quem ele pensava que era? Raiva nada adiantava, já tentara lhe golpear, lhe chamar dos piores nomes, mas  cada vez mais ele se ausentava. Estava alheio, rarefeito. Agora sua vingança era lhe desejar mal, , que virasse chuva e se escoasse nos esgotos, que se contaminasse com dióxido e outros óxidos mais. Ah, quando ele quisesse ser puro, teria que lhe procurar, para subirem a serra juntos, até o sitio de sua tia. Mas ele não queria mais, mesmo sabendo que com sua ausência não poderia viver. A liberdade era imperdoável.



Patricia

Espuma

A decisão de se matar tinha sido tomada com cuidado e critério. Não foi de uma hora para outra. A idéia surgiu numa noite de insônia e amadureceu durante vários dias sobrevividos à base de sorrisos falsos. O que Malvina demorou foi para escolher como se despediria desta vida sem graça e injusta. Tiro, pular de uma ponte, gás? Ela conversou com um amigo médico, viu séries policiais, procurou na internet. Não queria dor nem violência. E, como era vaidosa, mesmo na tristeza, desejava que a encontrassem inteira e lamentassem o seu triste fim. “Por que uma mulher tão bonita decide dar adeus à própria vida?”, diria o rapaz da perícia, imaginava Malvina.
Ela optou por cortar os pulsos na banheira de sua suíte. Cheia de espuma. Era sábado à noite. A filha mais velha iria para a casa do pai e, assim, ela teria a privacidade necessária para se despedir de sua casa, de suas memórias e lentamente morrer.
Porque hoje é sábado, é dia de Malvina morrer. Ela passeia pelos quartos, toca as fotos emolduradas, chora na despedida mas já não há mais tristeza nas lágrimas. Beija demoradamente o retrato do Danielzinho e murmura que, em breve, eles estarão juntos. Danielzinho era mesmo a cara do pai. Mesmo na contagem regressiva, ela tinha saudades do ex-marido e, por um segundo, se esqueceu da mágoa. Mas só por um segundo mesmo. Imaginar Daniel com a melhor amiga dela, quer dizer, ex-melhor amiga, fez com que o rancor lhe avermelhasse o rosto. A dor veio com tanta força que a levou direto ao banheiro. Era chegada a hora.
A espuma borbulhava na banheira como se tivesse vida própria. As horas esperando a morte seriam preenchidas repensando a vida, se despedindo das lembranças e acompanhando o fim das bolhas da espuma. “Vejo poesia na minha morte. Pena que não a encontrei em vida.”, lamenta-se Malvina.
Malvina deixa o roupão cair no chão com o glamour natural das divas. Entra sensualmente na banheira e, com a faca dentada do pão, corta verticalmente os dois pulsos. Assim é infalível, explicou o amigo médico.
“Quantas horas terei de vida agora?” – diz Malvina, em voz alta, encantada com a própria voz amplificada na acústica do banheiro.


Laís

Página em Branco

Desde criança, Ariela costumava escrever. Escrevia de tudo: cartas para amigas, diário, poesias, redações. Era como se houvesse uma linha direta entre seu cérebro – mas principalmente seu coração – e sua mão direita. E ainda assim ela tinha a sensação que ia deixando fragmentos de idéias e sentimentos no meio do caminho que ligava estes dois pontos do seu corpo.
Seus textos costumavam ser autobiográficos, ou, mais ainda, textos de desabafo, quase terapêuticos. Sempre foi mais fácil para ela escrever do que falar.
Na época em que precisava decidir o que ia ser quando crescesse, ela não tinha a menor idéia – como a maioria nesta idade. Chegou a prestar vestibular para Letras, mas no momento da decisão mesmo, foi tomada por uma “onda de realidade” onde as pessoas à sua volta perguntavam o que iria fazer com um diploma de Letras, como iria ganhar dinheiro. Foi então cursar Engenharia.
E foi assim que Ariela começou a se afastar da escrita, pelo menos do modo como estava acostumada. À medida que seu cérebro ia sendo formatado a pensar de forma lógica, racional e analítica, sua sensibilidade para textos que não fossem técnicos foi sendo reduzida. Seu caderno de poesia e seus textos sumiram nas mudanças da vida e nas mudanças de casa.
Reforçada por uma carreira executiva promissora, seus escritos tomaram o formato de uma apresentação de Power Point, em bullet points, à exceção de algumas cartas de amor, que também se tornaram cada vez mais raras e mais curtas (não por falta de amores, ainda bem!).
Com isso, a vida tornou-se mais opaca – impressionante como para ela as palavras tinham o dom de iluminar a realidade, fosse ela boa ou ruim, tornando as cores mais fortes e os sentimentos mais acentuados.
Começou a buscar textos de outros autores toda vez que precisava ilustrar um momento importante. Com o advento da Internet, isto se tornou mais fácil do que o envolvimento emocional de escolher as suas próprias palavras.
Não foi de todo ruim. Conheceu textos incríveis e percebeu que das duas, uma: ou um mesmo texto pode refletir vários sentimentos diferentes; ou todo mundo sente mais ou menos as mesmas coisas. Provavelmente ambos.
Ariela casou-se, teve um filho, separou-se, casou de novo. Trabalhou muito, sofreu e foi feliz sem perceber.
Só voltou a escrever quando virou avó. Diz que sua neta “destravou” a sua mão direita (na verdade agora escreve com ambas as mãos, teclando). Escreveu então a sua história, e a importância das pessoas que passaram pela sua vida era medida pelo número de páginas que ocupavam.
O texto ficou lá, guardado no disco rígido do seu computador, sem sequer uma cópia de segurança. Nunca imprimiu ou enviou para ninguém, já que ficou feliz só em escrever.
Um dia o disco rígido quebrou, ou algo parecido. Ariela perdeu todos os arquivos. E, aos 78 anos, se viu diante de uma página em branco, como se pudesse (e podia!) reescrever sua vida.
“Acho que os melhores momentos da minha vida ainda estão por vir”, começou ela. Não é fantástico o poder da escrita?
Gisela

A OFICINA DE ESCRITA

Eu não escrevia havia quase um ano e naturalmente me sentia inseguro em recomeçar. Acredito que não desejava reiniciar, mas naquele evento eu não tive muita opção. Se tratava da primeira tarefa da oficina de escrita na qual eu havia me inscrito fazia uns dois meses. Pensando melhor, se eu me inscrevi é provavelmente porque adoraria me aventurar pelas páginas em branco novamente. Comecei a digitar, bastante estimulado, no computador. Como era de costume, o início parecia fácil, mas, após algumas frases escritas, a variedade de idéias e a falta de foco pareciam imobilizar meus dedos no teclado. Não conseguia digitar algo que parecesse me fazer qualquer sentido e, especialmente, que eu achasse que agradaria à professora. Naturalmente, queria muito impressionar bem a professora. Uma professora que eu nunca tinha visto pessoalmente. Isso mesmo, não a havia conhecido, pois essa era uma tarefa anterior à primeira aula. Além de querer impressioná-la pelo simples fato de que ela seria minha mestra no curso, eu havia lido o nome dela no jornal naquele mesmo dia e pretendia assistir uma palestra que ela daria em breve. Era a época de uma feira editorial na cidade e os escritores estavam em alta. Tudo conspirava para aumentar meu nervosismo e congelar minhas mãos, mas resolvi seguir em frente. Como se não precisasse de nada mais para me pressionar, minha mulher chegou em casa e o relógio começou a andar mais rápido.

Dar um beijo e boa noite.
Colocar a filha pequena para dormir.
Preparar o jantar.
Arrumar a mesa.
Dar outro beijo.
Acender as velas.
Saber como foi o dia dela.
Contar como foi o meu.
Dar o terceiro beijo.
Terminar de escrever.

Se sentir bem por ter acabado o texto, mas com uma inquietação dentro da cabeça que parece sempre perguntar: “que será que ela vai achar do seu texto?” e “como será que vai ser o curso?”.

Felipe Candiota

Chuva de verão

Chegou em casa às nove da noite. Exausta! Que dia!
Um temporal arrasou o Rio no final da tarde. A mulher foi pega de surpresa em pleno Aterro do Flamengo. De repente tudo em torno virou água que subiu rápido, infestou o motor e fez morrer o Mercedes.
- Gervázio, o que vamos fazer?
- Ligar pro doutor. A senhora fique calma. Se a água continuar subindo, a gente vai ter de sair pela janela e ficar esperando o resgate em cima do capô. Vamos ter de agir depressa!
Ela alongou o pescoço e acenou a cabeça em todas as direções.
- Isso é um absurdo! Numa área tão importante da cidade!
Recostou-se no banco de couro, olhava as mãos suspensas no ar. Tinha almoçado com o marido no Centro. Em troca, a recompensa: o anel que parecia um quebra-cabeça de ouro branco e amarelo com quarenta e dois brilhantes. Uma jóia que considerou discreta. Chique.
- Socorro, Gervázio! Vamos morrer afogados!
O motorista argumentou que o resgate já estaria chegando. Eles viriam de balsa salva-vidas.
Ela ficou bem contente. Ao mesmo tempo, muito triste. Afagou sua Louis Vuitton...
- Uma sujeira só, Gervázio! Lixo e esgoto. Precisamos nos concentrar. Faça de conta que você é um ourives, que vende ouro e pedras preciosas. Imagine que é um personal stylist. Proteja meu anel e minha bolsa. O que você faria se eu lhe pedisse?...
O motorista segurou os objetos. Deixou cair a própria carteira: documentos, fotos de família e algum trocado, tudo para o fundo do carro. A água atingia a maçaneta.
O trabalho da defesa civil não se limitou ao resgate. A mulher, poderosa, fez com que a conduzissem para um spa urbano a meio caminho de casa. O soldado que a acompanhou na viatura não lhe tirava os olhos: queimada de sol, músculos à mostra e o efeito da toxina botolínica no rosto congelado. Um coquetel estético que impediu o rapaz de arriscar a idade dela.
- O senhor pode parar ali mesmo, no estacionamento daquele shopping, por favor.
Ela retomara o entusiasmo.
Enquanto isso, em terra firme, Gervázio, extenuado, enxugou o suor do rosto e ligou para a patroa. Comunicou-lhe que seus pertences estavam salvos. Abriu então um sorriso de alívio e pensou em correr para casa. A velha avó com certeza estaria preocupada, longe dali, na Baixada. Espiou o monitor de tevê na vitrine da loja e assistiu a chuva invadir casas em toda a região metropolitana. Porcaria de vida!

Agora, quase madrugada, sem dar atenção ao som do noticiário que vem da elecedê tela plana da suíte, a mulher retira a maquiagem diante do imenso espelho do banheiro. E aplica o ácido retinóico arrematando o procedimento com palmadelas na face.
- Meu bem - grita o marido -, disseram aqui que teve gente que perdeu tudo!
Provavelmente ela não entendeu: como pode perder tudo, quem não tem nada?

Beatriz Castanheira – novembro de 2008

Esses cachorros incríveis e suas histórias extraordinárias


Lulu

A Lulu é uma cachorrinha sensacional. Mas é mesmo. Não é aquela conversa mole de dona de cachorro quando encontra outro dono na praça ou quando mostra as fotos do bichinho no álbum do celular.
É porque ela tem um hábito que a torna assim tão especial. Ela fala. Que nem gente. Mas tem uma coisa: fala em japonês. Como eu descobri se eu não falo japonês? Foi fácil, o melhor amigo do meu filho é descendente de japoneses e foi ele quem desvendou o segredo da Lulu.
Mas eu preciso começar novamente essa história, senão vocês vão ficar confusos e eu quero que vocês concordem comigo que a Lulu é mesmo sen-sa-cio-nal.
Eu tenho uma amiga, a Lúcia, que é defensora de tudo o que vocês possam imaginar: criança sem casa, mulher que apanha de marido, todos os tipos de homossexuais, floresta, água e... cachorros. Ela é louca por eles. Tem uma ONG com outra amiga, que fica lá em Jacarepaguá (claro que tinha que ter nome de bicho no meio), chamada “Fuços e Focinhos”. Elas recolhem cachorros abandonados na rua, cuidam deles e depois ficam atrás de quem queira adotá-los.
Eu já tinha um cachorro – o Simba, que vocês já conhecem — , mas não consegui resistir aos apelos da Lúcia quando ela cismou que eu tinha de ficar com a Lulu. A conversa foi mais ou menos assim.
— Mas, você tem que ficar com a Lulu. Ela é a sua cara. Não, eu não estou dizendo que você parece uma cadela, não, amiga. É que o jeitinho dela combina com o seu. Ela é alegre, saltitante, muito meiga, um doce.
Bom, depois desses argumentos, como dizer não? E ainda teve mais:
— Além disso, ela praticamente me disse que queria ficar com você. Não, eu não estou apelando. Também não tô enlouquecendo, amiga! Sei lá, foi uma intuição. Depois daquele dia que você veio aqui, ela chorava só de escutar o teu nome. Sério! Não estou inventando. Olha, fica com ela uns dias e você vai ver que eu tô falando a verdade. Eu sabia que você ia ficar com ela, você vai amar...
E lá fui eu pra Jacarepaguá buscar a Lulu, a cachorra apaixonada.
Mas quando eu cheguei, realmente, só de ouvir minha voz, ela veio lá de trás da casa, correndo feito uma louca e pulou tão alto que eu tive que colocá-la no colo. A danada me lambeu todinha. Uma lambança só.
No chão, mocinha, no chão.
E o rabo? Eu já tinha visto cachorro balançar o rabo de alegria, mas rodar que nem hélice de avião, nunca. E o rabo rodando sem parar.
Aí ela falou pela primeira vez comigo. UAHHHUUAUAUAAAAUIARRRUAIAAAIAAAAIII! E outros sons assim parecidos. Eu achei muito engraçado, claro, mas não entendi nada e muito menos percebi que aquilo era japonês. Por uns segundos, achei que ela realmente tinha falado algo, só que eu não ia dar o braço a torcer e entrar na maluquice da Lúcia de cachorra falante.

Antonella

Mulher Radioativa

Estou emanando uma luz invisível. Gosto de pensar que é azul ou laranja. Minhas cores preferidas, mas os médicos insistem em dizer que é invisível. Vivo nesse isolamento que, ao mesmo tempo, me acalma e me fortalece. De vez em quando me desespera. É quase impossível dormir e eu faço questão de colaborar mais com a insônia recusando o dormonid, hipnótico para induzir o sono. A fome também não me deixa dormir. São mais de 24hrs em jejum e o café da manhã ainda vai demorar para chegar. Ainda são 4h e aguardo ansiosa pelas 7h quando devem me trazer uma bandeja de frutas. Única coisa permitida no dia de hoje. Para fortalecer as glândulas salivares. Água também é importante, e estou sem tomar há horas, quase 12h. Aprendi que quanto menos liquido reter, menos radiação. Os enfermeiros continuam entrando vestidos com seu avental de chumbo e nao me viram as costas. Medo da contaminação?Fico pensando e não resisto. Pergunto se algum paciente nesse quarto já quis sair correndo emanando radiação pelo corredor, ou então, se alguém já tinha cuspido na enfermeira sómente para testar seu poder de aterrorizar as pessoas a sua volta.Parece que nada disso nunca aconteceu. Mas, quem já passou por isso, deve já ter pensado em sair correndo por aí. Radioativo, só para mostrar sua angustia, seu medo, seu isolamento, o que o faria ter atitudes insensatas, como chorar, cuspir, espirrar, urinar nas pessoas. Beijar então nem se fala. Muito menos sexo. Troca de liquidos nesse estado é altamente contaminante. Esse sim é o pior dos confinamentos. Manter uma distancia segura de quem se ama. Meu desejo 'e perigoso e contagiante. Minha urina é altamente radioativa. Recomendam dar descarga mais de três vezes. Sigo a risca todas as recomendações e exagero um pouco mais, apesar de olhar para minha urina e vê-la límpida, inodora e inofensiva.Percebo meu rosto mais inchado e as olheiras profundas. Devo ter emagrecido uns 5 quilos. O fato de não poder usar maquiagem de deixa com um aspecto natural, que as vezes me assusta, e outras vezes me ilumina. Me deixa perceber como estou e quem sou. O cabelo também não pode receber qualquer tipo de tratamento químico, o que me faz perceber a cada dia a chegada de fios brancos, fortes, novos, enrolados, revoltos. Esse confinamento me coloca diante de mim, da minha real situação, do meu real estado de vida que me deixei estar. É como me olhar no espelho sem nenhum artifício, as marcas aparecem mais profundas, o cabelo ganha outro volume e cor, as unhas não podem ser pintadas e eu fico pensando em como seria se todos nós fossemos envelhecendo assim, naturalmente. Esse desapego me fortalece. Sei que me diferencia e me engrandece. Sou como sou. Estou como estou e não me envergonho. Não me escondo. Não posso fugir de mim. Dessa minha nova realidade. Aproveito o tempo escrevendo. Aproveito o isolamento para poder pensar. Preciso dessa estranha liberdade que o isolamento me permite.Não existe dor nem qualquer sintoma. Não tenho enjôo nem ânsia de vomito. Só muita fome. A consciência se mantem ativa. Os movimentos também. Mesmo que a disposição tenha sido afetada, a lucidez permanece. E o desejo. Cada vez mais forte. Essa noite insone pensei em picanha e comida japonesa. Tudo de mais proibido nessa fase. O médico, pelo qual estou quase me apaixonando perdidamente, me pergunta de qual comida eu mais sinto falta. Eu digo que é da liberdade de escolha. Ele ri sem graça da seriedade da minha resposta.Não para de entrar gente no quarto. Procedimento de rotina: pressão, temperatura, pulso e perguntam se eu já evacuei.. Eu digo que não. Sei que é um mau sinal. Significa mais tempo de confinamento. Como posso evacuar se não como há mais de 1 dia? O enfermeiro da manhã pergunta se eu consegui dormir. Eu digo que não, mas que consegui escrever. Digo feliz que escrevi bastante. Que estava até pensando em escrever um livro sobre esse período. Para as outras pessoas que tiverem que passar por isso. Ele não entende direito o que digo. Deve estar com sono. Ele me pergunta se não quero mesmo um remédio. Talvez passiflora, valeriana. Agradeço e digo que não. Pareço teimosa. O Luiz disse para eu aproveitar que ia estar no hospital e tomar tudo que tinha direito. Como assim, recusar um remédio para dormir? Aproveita e dorme. Passe os 3 dias dormindo. Eu não consigo. Quero estar atenta a tudo. Perceber todos os passos, os gestos. Todas minhas sensações. Meus medos. E para isso, preciso estar desperta. Finalmente 6h. Pronto. Ouço o barulho das bandejas do lado de fora. Chegou meu café. Suco de limão, laranja, kiwi, melão e morango. Veio também uma xícara de chá de camomila. Descubro que não preciso de muito para ser feliz. O fato de sentir esses pequenos prazeres me dá um prazer imenso. Devoro tudo em poucos minutos e, finalmente, durmo feliz.