- Beth, é você?
Os sons da diarista na casa lhe traziam um alento: ela não estava tão só.
O relógio da tela do computador marcava 22h30 quando o segurança, meio constrangido, veio lhe perguntar até que horas ficaria. Não havia mais ninguém no prédio, ele precisava apagar as luzes. No escritório pairava um profundo silêncio e ela produzia, desenfreada: assinava papéis, carimbava documentos, despachava projetos, imprimia planilhas, respondia e-mails da diretoria, em um transe eficiente. Assustou-se com a hora avançada, embora fosse um susto confortável e familiar.
- Beth?
- Oooooooiiii?, gritava a outra lá de dentro. Já acordou?
Chegara em casa faminta e exausta. Veio quase desmaiada no taxi, o motorista de sempre, que sabia a temperatura do ar que ela gostava, a rádio que queria ouvir, o trajeto que preferia, e sempre a acordava gentilmente ao chegar no edifício. O porteiro da noite lhe abria a porta do elevador, com o uniforme impecável e uma disposição irritante.
O apartamento escuro a aguardava feito bicho de estimação acuado, após um dia inteiro sozinho. Ela acendia todas as luzes, ligava o canal de notícias 24 horas, jogava no microondas o que havia para comer na geladeira. E tudo parecia saltitar em sua direção, abanando o rabinho e pedindo atenção.
Entrava no banho quente. A água batia no seu couro cabeludo, nuca, ombros. Os olhos fechados sentiam tudo doer, até o que não era físico. O melhor momento do dia era aquele, debaixo do chuveiro quente. O melhor e o mais doloroso.
- Quer que eu esquente seu leite? O jornal está em cima da mesa. Soube do senhor do 703, que teve um piripaque no coração? O meu filho sumiu de novo por três dias, mas já voltou, com rabo entre as pernas. A mulher disse que ia embora dessa vez, não adiantava ele chiar. Estão lá, resolvendo. Não estou conseguindo tirar a mancha daquela blusa azul, o que foi aquilo? - Ela providenciava seu bem-estar e trazia notícias do mundo lá fora. Fora do seu.
Para variar, demorara para conciliar o sono. Ficou um tempo no sofá, com o controle remoto na mão, caminhando a esmo pelos canais. “Remoto controle”, diria Adriana Calcanhoto. Percorreu com os olhos, sem ânimo, as prateleiras lotadas de CDs. Lembrou que o ouviu, pela última vez, no carro dele, na viagem a Mauá. Deve ter ficado no porta-luvas, na serra, no passado da reconciliação que não se deu. E o presente, o que era, além de um remoto controle remoto?
- A senhora quer que eu cozinhe o quê?
Não havia pensado em nada em especial, ela podia decidir. Estava atrasada, tinha que correr. Não pôde ouvir o resto da história do filho, nem da neta nascida há 3 dias. Saiu com gosto de menta e cheiro de protetor solar 60. O jornal, dobrado debaixo do braço; dois livros que não conseguia terminar de ler na bolsa e a sacola da academia, no ombro oposto. Qualquer coisa, que ela ligasse para o trabalho.
Ao bater a porta, restaram os passarinhos cantando na janela da sala, e o leite já frio, em cima da mesa.
Gabriela Sandes
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
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