terça-feira, 6 de outubro de 2009

O TRONO

Antonella Catinari



Após a primeira vez, perdi definitivamente a vergonha de me sentar no trono da Uruguaiana. Ao contrário, a convivência com Seu Jorge acabou demonstrando que as coisas são assim mesmo. Alguns sentam-se nos tronos e outros ajoelham-se e os reverenciam. O que não significa que eu fosse digno de que Seu Jorge se ajoelhasse a meus pés. A cada dia em que eu parava por ali — sim, tornou-se um hábito, posso até dizer um vício, engraxar os sapatos diariamente com Seu Jorge na hora do almoço —, menos digno daquele trono eu me sentia.
Cheguei ao cúmulo de me desfazer de sapatos que não fossem de couro, substituindo-os freneticamente por outros desse material, a fim de justificar minha ida diária ao encontro de meu mais novo e único amigo: Seu Jorge. Que eu então já passara a chamar de meu rei, de São Jorge.
Entreguei todos aqueles velhos sapatos a ele: meu melhor engraxate. Que apenas esboçou um muito obrigado, sem qualquer marca de servilismo ou gratidão cristã. Apenas um agradecimento, aliás, polido e sincero como todos deveriam ser.
Meu rei ficava ajoelhado enquanto eu, seu súdito, o observava do alto. Carapinha branca, riso bonachão e olhar digno, sempre a me fazer calar com suas precisas observações sobre a vida. Certa vez perguntei sobre o colar de contas verdes, único e permanente adereço. Era de Oxossi, guerreiro das matas. Seu Jorge era ogan. Não sei agora repetir fielmente o que isso significa, mas essa função casava de modo perfeito com a trajetória de nossa amizade. Que também não sei se é a melhor palavra para definir aqueles encontros marcados de forma tão inexorável em minha agenda interna.
Eis que um dia, porém, uma segunda-feira, para ser mais preciso, ele não estava lá. Estaquei confuso. Será que eu me encontrava na esquina certa? Cheguei até a verificar a placa das ruas: Uruguaiana e Presidente Vargas. Impossível que eu estivesse enganado. Olhei para o relógio. Meio dia e quinze. Nosso horário, estipulado unicamente pelo costume e não por algum acordo verbal. O trono, aberto como sempre, mas — somente após olhar com mais atenção para ele, foi que percebi — com um cadeado lacrando a caixa de madeira onde meu velho engraxate guardava suas preciosidades: escovas, ceras, tintas, panos, flanelas, além do maço de cigarros sempre por terminar e um isqueiro com a estrela do Botafogo, já meio apagada, sem brilho algum.
Ancorado naquela esquina, naquele mar de pessoas, fui jogado de uma vaga à outra, sem controle do que pensava e do que sentia. Um vazio apoderou-se de meu peito, e meus pés sentiram-se literalmente sem chão. Como não sentar no trono após passar um interminável fim de semana sem ele? Como não me distrair com a conversa de meu guia? Como não me divertir com a visão de sua carapinha, que a cada dia diminuía e se tornava mais branca?
Foi quando me deparei com a foto estampada num daqueles jornais de 50 centavos. Estava lá o corpo, o rosto, o inconfundível colar de contas verdes do guerreiro. Jogado no chão, baleado no peito. E, ao lado, a foto do algoz. Puxei violentamente o jornal do alto da banca, joguei os dez reais que trazia na mão para pagar o serviço de meu rei e saí atônito sem pensar em pegar troco ou dar atenção a qualquer grito do jornaleiro.

MONSTRO DA BULGÁRIA MATA ENGRAXATE COM TIRO NO PEITO
Povo prende e quase lincha o assassino do leste europeu

Morreu hoje o engraxate, conhecido como Seu Jorge, após não resistir à cirurgia feita às pressas na madrugada de sábado no Hospital Souza Aguiar, Centro do Rio. Vítima de uma bala perdida, disparada pelo terrorista búlgaro Stoyan Basicov, Seu Jorge foi levado por populares para o hospital, enquanto centenas de pessoas prendiam e quase lincharam o assassino. Nenhum parente apareceu ainda para reclamar o corpo do engraxate, que tampouco portava nenhum documento.
Stoyan Basicov, 35 anos, foragido e procurado pela Interpol, era conhecido como o “Monstro de Sófia”, devido aos requintes de crueldade de seus crimes. Acabara de chegar ao Brasil com um passaporte falso, declarando estar aqui como turista. Hospedado numa espelunca no Centro, escondia-se de contrabandistas de armas de facções rivais e da polícia internacional.
Na noite de sexta-feira, cerca das 22h, Seu Jorge encaminhava-se para a Central, como era seu costume, segundo testemunhas que não quiseram se identificar, quando foi alvejado por uma bala disparada pela arma do búlgaro, em tiroteio travado a cerca de 200 metros do Ministério do Exército. Nenhum dos outros meliantes foi preso, e as autoridades búlgaras ainda não se pronunciaram sobre o caso.


Na Uruguaiana, as vagas humanas agora arrebentavam-se contra as rochas de meus pensamentos, que explodiam em dúvidas. Que será de mim sem meu trono? Que será de mim sem meu rei? Quem serei eu agora?

Nenhum comentário:

Postar um comentário