segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Hoje acordara outra.

Hoje acordara outra. Sentia fome, foi para a mesa de café. Quando sentou-se ele logo percebeu. Tentou disfarçar, perguntou se ela tinha tomado seus remédios, ela respondeu com uma gargalhada. Ele não insistiu. Preferiu se arrumar para não chegar atrasado. Avisou, não sei se volto a noite. Ela jogou a xicara na parede. Gritou para que ele não a deixasse, não a largasse para ficar com aquela vagabunda. Ele desanimado já pensava em desistir, e se tudo se repetisse? E se no dia seguinte ele não a encontrasse com vida? Já bastava sua irmã, não podia passar por isso mais uma vez. Fazia meses que se dedicava a ela, a tirou do sanatório, a acolheu em casa. O que mais um grande amigo poderia fazer? Mas estava apaixonado, o namorado insistia em passar pelo menos uma noite juntos. Falou, eu volto, não vou te deixar e bateu a porta.
Para Miriam era o pior, acabara o ritual da manhã. Pegou um cigarro, o primeiro do dia e foi levando desordenadamente os pratos para a cozinha. A outra depois de oito anos voltava com força, debochada, caprichosa, invadia Miriam. Até o filme ela nunca tinha percebido o quanto sua estrutura era frágil, como eram frágeis as páginas do texto. As palavras escritas saíram pela sua boca, mas não saíram dela. O telefone tocou, era da Record. Perguntando por Miriam, tinha gravação hoje. A outra desligou dizendo aqui não tem ninguém com esse nome. Alegre saiu disposta a conquistar seu amor, no seu roteiro inventado.
Procurou nas ruas, sem descanso, sem comida, sem água. Os cabelos louros emaranhados e o robe rosa lhe faziam uma princesa triste, de pés descalços. Procurou olhando em cada rosto. Anoiteceu. Por fim se entregou, sem forças e deixou o corpo escorregar até o chão. Chorou. Chorou pelo o amor que não existia, por ter o mesmo destino de sua mãe, por não saber quem era.
Mas não estava sozinha, no fundo do beco tinha mais alguém. Usava roupas escuras que a disfarçavam nas sombras. Na cabeça um lenço amarrado. Aos poucos se levantou vacilante segurando um saco. Veio caminhando de lixo em lixo, alcançando o que podia e mastigando com uma boca sem dentes. Ali era a sua casa. Chegou perto e se agachou ao lado de Miriam. A olhou com os olhos perdidos e com a mão magra acariciou seu rosto. Como se a conhecesse, a mulher negra a colocou no colo e falou bem baixinho, não tenha medo minha filha. E se enlaçaram em um abraço.


Patricia



Personagens


1.   Miriam, 27 anos, atriz desempregada, solteira. Fez um único filme há cinco anos que nunca chegou a ser exibido. Tem sérios problemas mentais. Alguns medicos diagnosticaram esquizofrenia, outros disseram que era apenas bipolar. Tem acessos de euphoria durante o dia quando sai interpretando seus personagens pela cidade. Não tem endereço fixo. Seu ultimo namorado era um homem de 53 anos. Ex-produtor de cinema procurado pelo TCU para prestar contas de dinheiro público captado e não realizado. A mãe de Miriam, Juçara, mora no interior do Paraná, esteve internada algumas vezes e não tem contato com a filha. Atualmente mora de favor na casa de um amigo gay no edificio Copan em São Paulo e faz bicos na TV Record.


2.   Deparo-me com uma mulher deitada numa calçada, ao lado da grade do prédio da Biblioteca Nacional, sob uma grande árvore, nela recostada. Três grandes sacos plásticos, repletos de qualquer coisa, a acompanham e servem de travesseiro. Olhar perdido, parado, voltado para o infinito. Nada suplica, pouco se movimenta. Sua situação de abandono, deve ser suficiente para que ali receba algo, um resto de comida. Para que transeuntes se compadeçam e tomem a benvolente atitude de de lhe jogar uns míseros trocados. Em meio a sujeira, a dejetos, ela parece estar na rua para nos lembrar da desigualdade e ausência de compaixão. Negra, idade indefinida, pode ter quarenta, talvez cinquenta, nem magra, nem gorda, nem alta, nem baixa, roupas escuras, talvez sempre as mesmas. Quase invisível.

Um comentário:

  1. Patricia, Gostei da sua Miriam. A minha é ainda um pouco timida, a sua mais ousada. PArabens, vc conseguiu captar bem o estilo dela.

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