domingo, 11 de outubro de 2009

Dr. René (conto ESPUMA) - Lais Pimentel

Hoje Malvina tem consulta marcada. Oficialmente é consulta mas, para mim, trata-se de mais um encontro. Travo uma luta antiga para parecer o sempre correto, eficiente e atencioso clínico geral, o médico da família Furtado. Deixo sempre o horário seguinte vago para ficar à vontade com ela. Poucas, pouquíssimas, foram as vezes que ela aceitou tomar um café à tarde. Malvina não é boba. Sabe que eu a amo e a quero há anos. Mas, sempre muito fina, muito íntegra, nunca sinalizou que percebesse minhas intenções mas uma mulher sabe quando é desejada.

Acompanhei de perto, como médico e amigo, todo o drama do câncer e morte do Danielzinho. De início, achei que o menino iria sobreviver. Estive presente, consultei especialistas, procurei novidades nos tratamentos, ofereci meus conhecimentos e minha presença, mesmo quando o protocolo pedia privacidade para aquela família que se desfazia a olhos vistos. A morte do filho, a traição de Daniel com a sonsa da Leila, o fim do casamento. Uma sucessão de traumas para Malvina. E, para mim, o que mais doeu foi não poder tê-la abraçado com a força que merecia, a solidez que precisava para que ela se sentisse segura para desabar, se desmanchar em lágrimas.

Nos últimos meses, ela marcou mais consultas do que o normal. Conversávamos muito no meu consultório. A Dinah já sabia que eu não deveria ser interrompido por ligações bobas. Só emergências de verdade. Tínhamos um ritual. Eu preparava um expresso na minha máquina Lavazza e batíamos longos papos. Eu começava sempre com um ar de médico mas em segundos era um fã assumido. Mesmo na dor, Malvina não perdia o porte de princesa, uma elegância inquestionável, fria, segundo algumas mulheres invejosas, como a minha ex, por exemplo.

Malvina precisava de um homem mais velho como eu cuja experiência ensinou o que é merecedor de atenção nesta vida, como ela, uma mulher sensível porém equivocada na escolhas que fez. Casou-se com o homem errado e errou na escolha da confidente. A morte do filho foi uma cachorrada da vida. Cachorrada, não, pois Malvina é amante dos animais. Foi simplesmente uma putaria. Daí eu nunca ter questionado seu súbito interesse por assuntos mórbidos. Certamente a perda de um filho deve levar muitas mulheres para um lugar sombrio, na busca de entender esta separação irreversível e cruel. Malvina queria saber o que sente alguém que morre. Como a medicina investiga estas sensações finais. Registros históricos garantem que quem é decapitado ainda tem alguns segundos de consciência após a queda da cabeça no chão. Ou seja: a cabeça vê o próprio corpo separado dela! Malvina ouvia atentíssima. Acho que nunca a vi tão interessada em algo. E queria detalhes: tiro na cabeça, no peito, envenenamento, cortar os pulsos, se jogar de uma ponte, uma batida de carro proposital. Chances de sobrevivência, seqüelas, casos clássicos...

Não a poupava de detalhes. Eu me valia da minha condição para contar lhe histórias colecionadas em anos de prática médica. Nunca tive tanto orgulho de ser quem sou. Mas, nesta sexta-feira, quis ser mais ousado. Não resisti. Dei-lhe um presente. Algo mais íntimo.
“Um presente, René?”
“Gostou? O perfume te agrada?”
“Não sinto cheiro algum. Meus sentidos estão mortos, acho...”
“Um dia, Malvina, prepare um bom banho e use esta espuma. Quero que você se sinta abraçada e protegida por mim e relaxe, relaxe de verdade. De alguma maneira, espero que possa te ajudar a se sentir bem.”

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