quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Antonio e o Vulto

Antonio e o Vulto

Ursula Wetzel

É segunda-feira e chove muito. Lucio chega ao escritório um pouco afobado, por pouco não se atrasa. Abre o guarda-chuva no canto da sala e comenta com a voz levemente alterada:

- Rapaz, eu levei um susto! Quase atropelei um cara na Linha Vermelha!

- Hum?

- É. O cara passou correndo na minha frente. Eu acho que era um daqueles vendedores, sabe? A pista do lado de lá, de quem vai para o Centro, estava parada e o cara estava com um pacote na mão. Devia estar com pressa para não perder freguês.

Ninguém levanta a cabeça ou incentiva o prosseguimento do relato. Na sala trabalham quatro pessoas. Antonio é o chefe. Ele não aprova conversa desnecessária. O trabalho é coisa séria e quem não gostar do seu jeito que procure outro lugar. Como o emprego anda difícil, a empresa paga razoavelmente bem e ainda oferece plano de saúde, ninguém se atreve a contestá-lo. Não que ele seja mau, mas usa demasiadamente a ironia como forma de comunicação.

Às nove horas Inês chega novamente atrasada. Lucio e Ana percebem logo o rosto inchado. Antonio levanta-se da cadeira, aproxima-se de Inês e dispara, curto e grosso:

- A Sra. anda dormindo muito tarde.

Na hora do almoço Antonio come um sanduíche no bar, volta para a mesa, abre o jornal e lê durante o tempo que lhe resta. Ninguém lhe faz companhia. O restante do grupo, que sempre almoça junto, tem em Antonio um dos assuntos prediletos de conversa.

- Coitada da mulher dele. Já pensou ser casada com um homem assim? Não deve nem reparar quando a mulher corta o cabelo.

- Ele parece que toma suco de vinagre em vez de café da manha. Está sempre com aquela cara fechada. Acho que nunca ouvi uma gargalhada sua.

Ao final do dia o grupo se retira. Primeiro Inês, apressada e ansiosa por evitar a possibilidade de mais um comentário de Antonio; depois Lucio e Ana, com dois secos - Boa Noite. O telefone toca, Antonio atende. É sua mulher, aos prantos:

- Junior foi atropelado. Está com a perna quebrada, em observação no hospital do Fundão. A sorte é que a pista estava engarrafada e o carro vinha devagar. Sabe o que ele estava fazendo? Vendendo bala na Linha Vermelha. Na Linha Vemelha! Como se morasse na favela! Tudo para conseguir o dinheiro, que você disse que não ia dar porque ele tinha que aprender a dar valor às coisas! Os outros sempre tem que dar valor a alguma coisa. Sempre os outros! E você, dá valor ao quê, dá valor a quem?

Antonio apenas responde que está indo para o hospital. No hall do elevador é um dos últimos a deixar o escritório. O espelho reflete um vulto.


Os personagens: Antonio e O Vulto
Antonio
Constante, controla, tem a pele grossa e é indiferente à dor dos outros, apresenta pouca alteração de humor, tem grande dificuldade em elogiar, sua mais espontânea [expressão] é o desprezo ou deboche, protege os que ama silenciosa e veementemente. A visão de mundo é demonstrada de forma negativa, mas sem rodeios, sem lamúrias. Raramente se queixa. Se expressa através de pequenos desprezos, como se sua opinião fosse fato. Não se pedem coisas a ele. Ele não abre espaço.

Vulto
Sexo: indefinido (parece homem)
Cor: parece moreno (mas esta sob chuva forte e eu observo do interior do meu carro. É quase noite e ele está na pista de sentido contrário. No trânsito, correndo entre os faróis parados e pendurando sempre o que parece ser um pequeno objeto no espelho retrovisor dos carros).
Peso: magro, leve
Altura: um pouco mais alto do que um Fusca e mais baixo do que um Land Rover.
Idade: parece adolescente, quase adulto
Onde foi visto: Linha Vermelha (próximo ao complexo da Maré)

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