segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ajuda

(Gisela)

Eu estava no ponto do ônibus como todas as manhãs, praticando meu esporte preferido: observar as pessoas. Apesar de gostar de fazer isso, muitas vezes antes mesmo de o ônibus chegar eu já estava bocejando de tédio, pois não via nada de especial. Aquele dia foi diferente.

Do outro lado da rua, uma moça muito bonita conversava com uma amiga enquanto caminhava. Passava um ar de extrema autoconfiança, não sei se porque gesticulava muito, ou por não deixar a amiga falar. Não pude deixar de reparar nela - eu bem como todos os homens pelos quais ela passou. Ela e a amiga pararam para atravessar a rua bem em frente ao ponto de ônibus onde eu estava e acho que ela notou que eu a estava observando.

Por um segundo desviei o olhar, acho que fiquei envergonhado, já que tenho uma namorada de quem gosto muito. Foi quando percebi um Palio prata, já meio fosco, despontando no fim da rua. O carro tinha insulfilm, por isso até aquele momento não pude identificar quem dirigia.

Mas voltei a observar a tal moça. Ela parecia ansiosa para o sinal fechar logo - olhava para a luz vermelha, olhava para o relógio, argumentava com a amiga. Até que resolveu atravessar assim mesmo.

O Palio prata estava passando bem na hora. Não estava correndo, mas a velocidade era suficiente para que a freada brusca não parasse o carro a tempo e derrubasse a moça.

Todos correram para socorrê-la, porém ela não parecia muito machucada, afora um ou outro arranhão. No entanto, estava extremamente irritada.

Neste momento saiu do carro o motorista. Ele devia ter pouco mais de 40 anos, vestia calça jeans escura e blusa cinza e estava muito assustado: “ela está bem?”, ele repetia, “eu só fui pegar os óculos escuros, foi uma fração de segundo, e quando vi, ela já estava em cima do meu carro”, e novamente, “ela está bem?”

A moça literalmente partiu para cima do motorista e, apesar de estar completamente errada, chamou-o de nomes que eu mesmo nem conhecia. Ele parecia não ouvi-la, tamanho o remorso e preocupação: “a senhorita não está machucada?”, “posso te ajudar?”, “quer que eu te leve para algum lugar?”.

“Senhorita não, que eu tenho nome – é Isabela”, ela retrucou, “não, não preciso de ajuda”, “não preciso que me leve a lugar nenhum, eu nunca preciso de ajuda”.

Eu fiquei mesmo é com pena do motorista, mais até do que da moça, que saiu proferindo palavrões, amparada pela amiga. Chamei-o para tomar uma água no botequim da esquina, para ver se ele se acalmava.

Acabamos nos tornando amigos. É que o tal motorista (que agora sei que se chama João), além de não ter namorada, não tinha muitos amigos e ficou muito agradecido pela minha atenção.

Ele me contou que deixara seu número de telefone com ela, caso precisasse de alguma coisa. Afinal, por mais que ela tivesse se atirado na frente do seu carro, ele ainda achava que poderia ter evitado o acidente: “talvez, o rádio tenha me distraído, já que normalmente deixo-o desligado...”. Além disso, a moça é muito bonita, e ele estava sozinho há muito tempo. Mas o que o deixou impressionado mesmo foi o fato de ela ficar repetindo que nunca precisava de ajuda.

Hoje, cerca de um mês depois do acidente, João me telefona e conta que Isabela o procurou. Ela disse que a amiga que a acompanhava insistiu o mês inteiro que ela deveria se desculpar pelo modo como havia tratado João.

Mas ele acha mesmo que isso foi apenas uma desculpa. No final do telefonema, que foi muito amistoso por sinal, ele jura que ouviu baixinho ela pedir pela primeira vez: “me ajuda?”


PERSONAGENS RECEBIDOS

Isabela: infame na cidade, verdadeira, transparente. Percebe o olhar maravilhado, invejoso. Independente, não no sentido financeiro, mas emocional. Terrível na capacidade de afrontar. Só não aceita brincadeira e, à vezes, é mal-humorada. E também impaciente. Tem de aprender a construir suas cercas, defender-se da vizinhança.


Personagem 2: Motorista
Sexo: Homem
- Motorista (não por profissão, apenas para deslocamento próprio entre casa e trabalho)
- Dono de um carro com insulfilm (um carro classe média / popular. De cor prata, já fosca)
- solitário
- pele branca, cabelo castanho
- roupa: calça jeans escura, blusa cinza
- guarda no console um óculos de sol
- escuta música clássica e noticiário, mas a maior parte do tempo deixa o rádio desligado
- idade: 43 anos

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